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sábado, 5 de dezembro de 2009

Ocapote - Nicolai Gogol




Na Repartição de... Mas será melhor não a nomearmos, porque nada há mais susceptível do que os nossos empregados públicos, desde os amanuenses aos chefes de repartição. Actualmente, cada um sente-se em particular como se na sua pessoa toda a sociedade tivesse sido ofendida. Diz-se que um capitão da polícia apresentou, ainda não há muito tempo, uma queixa - não me recordo em que cidade isto se passou – revelando claramente que os decretos imperiais eram desdenhados por toda a gente e que o santo nome de um oficial era proferido com desprezo. E juntava, como prova, o volumoso tomo de certa novela em que, de dez em dez páginas, aparecia um capitão da polícia, e, o que é demais, em completo estado de embriaguez. Deste modo, para evitar desgostos, em vez de indicar a repartição onde ocorreu o facto, é preferível dizer apenas: "Numa repartição..."
Por conseguinte, "numa repartição" servia "um funcionário". Esse funcionário, é justo dizê-lo, era muito distinto: de estatura baixa, um pouco picado das bexigas e igualmente um pouco curto de vista, com uma pequena calva a principiar na testa, rugas nas duas faces e, no rosto, essa cor característica do hemorroidal ... Que se lhe há-de fazer: A culpa era do clima de Sampetersburgo. Pelo que se refere à sua categoria (pois é entre nós a primeira coisa que se menciona), era o que se designa por "conselheiro titular perpétuo", um daqueles com que satirizam certos escritores que têm
o benemérito hábito de cair a fundo sobre os inofensivos.
O nosso funcionário tinha o apelido de Blaquemaquine (sapateiro), e já por esse apelido se vê qual tinha sido a sua ascendência; mas quando, onde e de que maneira tal apelido surgira ninguém o sabia; sabia-se apenas que pai, o avô e até mesmo o cunhado, e em geral todos os Blaquemaquines, tinham ascendentes sapateiros. Chamava-se Acaqui Acaquievich. Ora é possível que o leitor considere este nome um pouco estranho e pretensioso, mas pode crer que não é assim: ele foi-lhe posto nas circunstancias mais naturais e é fácil ver que não poderia ter sido outro. Acaqui Acaquievich nasceu na noite de 23 de Março. A sua defunta mãe, esposa de um funcionário, muito boa mulher, dispôs as coisas para que o menino fosse batizado segundo as praxes. A mãezinha estava ainda de cama em frente da porta; à direita, de pé, o padrinho, Ivan Ivanovitch Erochquine, excelente homem, chefe de uma secretaria do Senado, e a madrinha, Arina Semenovna Bielobriuchkova, esposa de um oficial e mulher de extraordinárias virtudes. Apresentaram à parturiente três nomes para que escolhesse aquele de que mais gostasse: Moquia, Sosia, ou então o nome do mártir Josdasata. "Não!", pensou a doente. "Que nomes!" Para lhe serem agradáveis, levantaram a folhinha do calendário e leram, noutro lugar, mais três nomes: Trifili, Dula e Varaiasi. "Que castigo este!", comentou a mulher. " São tão bonitos como os outros! Nunca ouvi esses nomes! Ainda se fosse Varadat, ou Varui, mas agora Trifili e Varaiasi!" Voltaram mais uma folhinha do calendário e deparou-se-lhes: Pafsicai e Vaitisi. "Já vejo", disse, "é o destino que o quer! Nesse caso, prefiro que tenha o nome do pai. O pai chamava-se Acaqui, e o nome do filho será, portanto, Acaqui." Resultou dessa maneira Acaqui Acaquievich. O menino foi baptizado, chorou e fez grandes caretas, como se pressentisse que teria de ser conselheiro titular. Foi isso que aconteceu.
Contamos isto com o propósito de levar o leitor a compreender por si próprio como foi fatal a impossibilidade de lhe dar outro nome. Quando teria sido colocado na repartição e quem o teria nomeado são coisas de que ninguém se recorda. Todos os directores e todos os chefes de repartição que por lápassaram viram-no sempre no mesmo lugar, na mesma posição e com a inalterável dignidade de um burocrata que compulsa requerimentos; ao vê-lo, poderia julgar-se que assim nascera neste mundo, completamente burocratizado, de uniforme e calvo.
Ninguém na repartição o respeitava. O porteiro não só não se levantava à sua passagem como nem sequer se dignava lançar-lhe um olhar: importava-se tanto com Acaqui como com uma mosca. Os chefes aproximavam-se dele com uma frieza autoritária. Qualquer ajudante do chefe de secretaria metia-lhe um oficio debaixo do nariz sem lhe dizer sequer: "Copie!", ou "Aqui tem você um belo trabalhinho, uma tarefa interessante", ou outra qualquer coisa amável, como é estrito dever dos funcionários inferiores bem-educados dizerem. O nosso homem pegava no ofício, olhava-o, sem mesmo reparar em quem lho entregara ou se aquele trabalho lhe competia, e punha-se imediatamente a escrever. Os empregados mais jovens elegiam-no por tema de zombarias e chacotas e os amanuenses, que se presumiam de espirituosos, contavam, na sua presença e de diversos modos, a sua própria história e a da sua hospedeira, velhota dos seus 70 anos, que, segundo diziam, o espancava; e perguntavam quando era o casório, atirando-lhe à cabeça pequenos pedaços de papel, a fingir de flocos de neve. Acaqui Acaquievich não respondia uma só palavra às zombarias, como se ali estivesse sozinho. Essas chalaças nem sequer exerciam influência na tarefa que o absorvia: apesar de todas as impertinências de que era objecto, não fazia um único erro de escrita. Só quando a brincadeira se tornava insuportável e lhe batiam no cotovelo, desviando-lhe a atenção. exclamava:
"Deixem-me! Porque zombam de mim?" E havia alguma coisa de estranho nas suas palavras e na voz alterada com que as pronunciava. Alguma coisa soava nelas que despertava compaixão; e, por isso, um jovem colocado na repartição havia pouco tempo, que, seguindo o exemplo dos demais, se permitia zombar dele, deteve-se, impressionado, e modificou, a partir de certa altura, o seu comportamento, como se tudo, repentinamente, se tivesse transformado. Que forca sobrenatural o elevava acima de todos os seus companheiros, a quem, até então, considerara pessoas correctas e civilizadas! E muito tempo depois, no meio das suas alegrias e prazeres, detinha-se, perplexo, a recordar o funcionário baixo, de calva a principiar na testa, e ouvia-lhe as penetrantes palavras: "Deixem-me! Porque me vexam?" E juntamente com essas palavras penetrantes ressoavam outras: "Sou vosso irmão!" E o jovem cobria o rosto com as mãos e estremecia intensamente, vendo quanta desumanidade existe no homem e quanta grosseria se disfarça sob a polidez, a educação e as maneiras da gente fina. "Deus meu! Até mesmo aquele cavalheiro a quem toda a gente considera digno e honrado..."
Dizer que servia com zelo não basta; deve dizer-se: servia com amor. Ali, naquelas cópias, revia-se como num mundo tranquilo e feliz. O prazer gritava-lhe na face. Havia letras que eram suas favoritas e, quando as escrevia, ficava como que excitado: sorria, devorava-as com os olhos e acompanhava a tarefa soletrando com os lábios, de maneira que era quase possível ler-lhe no rosto cada uma das letras que com a pena escrevia. Se tivesse sido proposta uma recompensa proporcional à sua diligência, talvez que, com espanto seu, já tivesse sido nomeado conselheiro de Estado. Mas tudo quanto ouviu foi uma cruel alusão dos seus companheiros irónicos: que em vez de uma condecoração na lapela tinha hemorróidas noutro sítio. E era assim a consideração que mostravam ter por ele. Um director, homem de bom coração, desejando recompensá-lo pelos seus diligentes serviços, ordenou que lhe dessem alguns trabalhos de mais importância do que as simples cópias vulgares; encarregaram-no de informar outra repartição acerca dos documentos passados naquela a que pertencia, consistindo a sua tarefa em mudar os títulos e passar os textos da primeira pessoa gramatical para a terceira. Isto exigia-lhe tamanho esforço que, sem exagero, transpirava; esfregando a testa, exclamou por fim: "Não; é melhor que me dêem um trabalho de cópia." E desde então ficou, para sempre, copista. Fora do mundo das cópias de ofícios, nada para ele existia. Nem sequer se preocupava com o vestuário; o seu uniforme perdera a cor amarela e tinha agora um tom desbotado e indefinido; a gola do casaco era estreita e baixa, de modo que o pescoço, apesar de ser um pouco gordo, parecia de uma extraordinária altura, lembrando aqueles gatitos de gesso que movem a cabeça.
Trazia sempre qualquer coisa agarrada ao uniforme, fossem palhas ou palitos, pois tinha tanta sorte, ao ir pela rua, que passava debaixo de uma janela no preciso momento em que deitavam fora uma lata vazia, e trazia sempre no chapéu de chuva pevides e cascas de melão, ou coisas semelhantes. Nem uma só vez na vida prestara atenção ao que se passava ou sucedia diariamente na rua. Nisso era muito diferente dos jovens funcionários, que, de olhar extremamente móvel e penetrante, imediatamente notavam quem levava os fundilhos das calças um pouco coçados, sorrindo com irónico prazer das alheias misérias. Acaqui Acaquievich, embora divagando o olhar por tudo isso, via exclusivamente os seus ofícios correctos, copiados com uma letra esmerada, e só por casualidade, quando lhe roçava pelo ombro o focinho de um cavalo e o vento lhe soprava no rosto, só então, dava conta de que se não encontrava no meio de um parágrafo, mas no meio da rua. Ao chegar a casa, sentava-se à mesa, levava rapidamente à boca umas tantas colheradas de sopa, comia a carne de vaca com cebola, sem atender sequer ao paladar: era capaz de come-la com moscas e tudo. Quando verificava que começava a ter o estômago cheio, levantava-se da mesa, ia buscar um pequeno tinteiro e copiava os papéis que trouxera da repartição para trabalhar em casa; se não trouxera trabalho, ocupava-se então a copiar por gosto e divertimento, e fazia-o com uma íntima satisfação, não derivada apenas do belo talhe de letra que possuía, mas da importância da pessoa a quem imaginava que o ofício se dirigia.
Até quando se obscurece totalmente o céu nevoento de Sampetersburgo e toda a multidão de empregados ceia segundo as suas possibilidades, conforme os vencimentos e os gostos particulares de cada qual; quando todos descansam de ouvir o incessante arranhar da pena no papel e do constante vaivém da vida diária, quer das andanças realizadas por motivo da profissão, quer de todas quantas empreendem homens insatisfeitos e inquietos; quando os funcionários se apresentam a dedicar o tempo que lhes resta em distracções várias - uns no teatro, outros na rua, observando certas sombrinhas elegantes, outros ainda adorando uma bela e modesta dama, estrela de um pequeno círculo de empregados, e, ainda mais frequentemente, algum outro em casa de um colega que habita no segundo ou terceiro andar, em dois diminutos compartimentos, tais como uma antessala e uma cozinha e uma lâmpada ou qualquer outro objecto que ostensivamente pretende estar na moda e que custou muitos sacrifícios, renúncias a prazeres e divertimentos -, numa palavra, à hora em que todos os burocratas se dispersam pelas exíguas habitações dos amigos, para jogar o whist, bebendo aos golos pequenos chá com açúcar, apertando-se uns contra os outros no ambiente denso do fumo que se evola dos grandes cachimbos, contando o resultado de qualquer intriga da alta sociedade, coisa a que nunca o Russo, e em qualquer condição, pode renunciar, ou então, quando não há outro assunto, repetindo uma velha anedota acerca de um comandante a quem vieram dizer que tinha sido cortado o pescoço do cavalo do monumento de Pedro, o Grande; em suma, até nos momentos em que todos procuram divertir-se, Acaqui Acaquievich não se entregava a divertimento algum. Ninguém podia afirmar tê-lo visto num sarau. Depois de copiar o mais que podia, deitava-se, antecipadamente se regozijando a pensar no dia seguinte. "Que lhe ofereceria Deus para copiar amanhã?" Assim se escoava a vida do homem pacífico a quem bastaria uma modesta aposentação para fazer feliz e que teria de prosseguir a mesma vida até à mais provecta idade se não sucedesse qualquer das desgraças que não surgem apenas na vida de um titular, mas também na dos próprios conselheiros secretos efectivos e na dos conselheiros da coroa, inclusive na daqueles que não dão conselho algum e de quem, de resto, nem se aceitam.
Em Sampetersburgo existe um poderosíssimo inimigo de todos os que recebem uns quatrocentos rublos de vencimentos anuais. Esse inimigo não é outro senão o frio do Inverno, que é, aliás, considerado, por alguns, muito sadio. Às dez da manhã, ou seja à hora em que as ruas se enchem de todos os que se dirigem para as respectivas repartições, começa o vento a distribuir fortes zurzidelas, que cortam todos os narizes à direita e à esquerda, sem selecção de nenhuma espécie, de maneira que os pobres funcionários não sabem onde e como os podem resguardar. À hora em que até aos mais altos empregados dói a cabeça com frio e em que as lágrimas lhes saltam irresistivelmente dos olhos os pobres conselheiros titulares encontram-se, por vezes, indefesos. A única salvação consiste em caminhar o mais depressa possível, embrulhados nos finos capotes, percorrendo cinco ou seis ruas, e deixar depois arrefecer os pés na portaria, perdendo assim a única vantagem da ofegante caminhada.
Acaqui Acaquievich andava há tempos a sentir intensas picadas nas costas e nos ombros, apesar de se esforçar por transpor as distâncias o mais rapidamente possível. Começou a pensar se o responsável disso não seria o seu capote. Ao chegar a casa, examinou-o cuidadosamente e descobriu que a fazenda estava puída em dois ou três lugares, precisamente nas costas e nos ombros, de tal modo que se tornara uma rede, e em virtude de o forro se encontrar também esgarçado. Convém saber que o capote de Acaqui Acaquievich servia também de motivo de chacota aos funcionários; chegaram até a recusar-lhe o nobre nome de capote e a chamarem-lhe capinha. Tinha, efectivamente, uma forma pouco comum nos capotes, visto que a gola diminuía de ano para ano, porque era utilizada para remendar o resto. Quanto aos remendos, não demonstravam gosto algum da parte do alfaiate; demonstravam, muito pelo contrário, grosseria e fealdade.
Tendo Acaqui Acaquievich considerado ponderadamente os prós e os contras, decidiu-se a levar o capote a Petrovich, um alfaiate que habitava num quarto andar sem sol e que, apesar de zarolho e bexiguento, se ocupava, com bastante habilidade, em consertar calças e fraques de funcionários, isto, é claro, nos momentos em que não se encontrava em estado de completa embriaguez e não alimentava na sua cabeça outras
ideias. Não faria falta, dir-se-á, falar deste alfaiate, mas, já que é costume dar a conhecer plenamente em todas as histórias o carácter de uma personagem, não deve haver inconveniente em que apresentemos aqui Petrovich. Começara por se chamar simplesmente Gregório, e era então um homem equilibrado, servo de um senhor. O nome Petrovich data da época em que alcançara a liberdade e em que dera em emborrachar-se valentemente todos os dias de festa; primeiro só nos dias grandes, e depois, sem destrinças, em todos os dias santificados, sempre que no calendário encontrasse uma cruz. Permanecia, por este lado, fiel aos costumes dos antepassados, e, ralhando com a mulher, chamava-lhe mundana e tudesca.
Já que citámos a consorte, conviria dizer duas palavras acerca dela: por desgraça, tudo quanto se sabe a seu respeito é que era mulher de Petrovich, que usava gorro à russa e não lenço; não parecia distinguir-se pela sua beleza, e o mais que aconteceu foi encontrarem-se duma vez com ela os soldados da guarda ao regimento, mirarem-na por baixo do gorro, fazerem trejeitos com a boca e proferirem certas palavras que não podemos repetir. Subindo a escada que conduzia a casa de Petrovich - escada essa que, para dizer a verdade inteira, estava cheia de pequenas poças de água de cheiro nauseabundo e penetrante, vencendo esse odor estonteante que faz até
arder os olhos e que, como se sabe, constitui característica inseparável de todos os andares interiores das casas de Sampetersburgo -, subindo a escada, meditava Acaqui Acaquievich naquilo que podia pedir-lhe Petrovich, e a si mesmo jurava não dar mais de dois rublos. A porta estava aberta. A mulher do alfaiate cozinhava peixe e provocara tal fumarada na cozinha que não era sequer possível descortinar as baratas. Acaqui Acaquievich passou junto da cozinha sem que a mulher o notasse e chegou ao quarto, onde encontrou Petrovich sentado sobre uma grande mesa de madeira, com as pernas cruzadas como um paxá. Estando de pés descalços, como é costume entre sapateiros quando estão a trabalhar, despertavam atenção, pelo seu tamanho, os artelhos, bem conhecidos de Acaqui Acaquievich, com as unhas enormes, espessas e fortes como carapaças de tartaruga. Em volta do pescoço tinha fios de linha e de seda e estendidos nas pernas farrapos velhos de variegadas cores. Havia três minutos já que tentava enfiar a agulha, sem o conseguir, e por isso praguejava exaltadamente contra a obscuridade e contra a maldita linha, gritando em altos berros: "A imbecil não entra na agulha! Esta maldita cai-me das mãos!"
Era para Acaqui Acaquievich extremamente desagradável chegar ali no momento exacto em que Petrovich experimentava um tal assomo de cólera: preferiria encarregá-lo do trabalho noutra altura, quando tivesse perdido a fúria ou, como dizia a mulher, quando esse diabo torto estivesse adormecido pela aguardente. Nessas ocasiões, Petrovich mostrava-se relativamente afectuoso e aquiescente, chegando mesmo a conceder um cumprimento ou a agradecer. A mulher vinha, é claro, acto contínuo, a chorar, dizer que o marido estava embriagado e que, por isso, ajustara o trabalho por uma ninharia; mas, juntando dez copeques ao preço estipulado, o assunto ficava resolvido.
Neste momento, Petrovich encontrava-se, segundo parecia, num dos seus dias de temperança, e, por conseguinte, rígido, pouco falador e disposto a pedir preços exorbitantes. Compreendendo-o, Acaqui Acaquievich ainda pensou em retroceder, sem ser visto; mas era demasiado tarde. Petrovich virou para ele o seu único olho e Acaqui Acaquievich disse, sem querer:
- Bom dia, Petrovich!
- Muito bom dia, cavalheiro! - replicou Petrovich, desviando o olho em direcção às mãos de Acaqui Acaquievich, a ver que bela prenda lhe traria.
- Venho a tua casa, Petrovich, efectivamente...
Convém saber que Acaqui Acaquievich se exprimia quase sempre mediante partículas gramaticais sem qualquer significado. Se o assunto era muito complicado, tinha por costume não terminar a frase, de modo que os elementos principais da oração eram precedidos das palavras "coisa, com efeito, absolutamente ..", e calava-se depois, supondo ter já dito tudo quanto pretendia.
- Quê? Vamos lá a ver... - interpôs Petrovich, observando naquele instante, com o seu único olho, toda a fatiota, desde a gola às mangas, desde as costas à labita e às pernas das calças, tudo tão seu conhecido, como produto da virtuosidade das suas mãos. Era o que, como um verdadeiro alfaiate, fazia antes de mais conversa.
- Pois eu, o caso é este, Petrovich... este capote, a fazenda... como vês, está ainda boa em todos os sítios... um pouco coçada, é certo, e com aspecto de velha, embora seja nova ainda, se exceptuares neste sítio um rasgãozito, uma coisa pequena aqui... nas costas... e também aqui... neste ombro, um pouquinho puído. E só isto, vês? Não é grande coisa.
Petrovich pegou no capote, estendeu-o em cima da mesa, examinou-o durante largo tempo, abanou a cabeça e estendeu a mão para uma velha caixa de rapé que tinha na tampa o retrato de um general, cujo nome não é possível precisar por a sua fisionomia estar suja dos dedos do possuidor. Depois de tomar uma pitada, Petrovich pôs o capote contra a luz e voltou a abanar a cabeça: tornou a pegar na caixa que tinha o general na tampa e, introduzindo o rapé no nariz, fechou-a e pô-la de lado, dizendo finalmente:
- Não, não tem conserto; isto é um monte de trapos.
Ao ouvir estas palavras, a Acaqui Acaquievich oprimiu-se-lhe o coração.
- Porque dizes isso, Petrovich? - murmurou ele quase implorativamente, com a sua voz infantil. - Só está um pouco puído aqui nos ombros, mas tu, certamente, hás-de ter algum pedaço que...
- Não seria essa a dúvida, ainda tenho dessa fazenda - disse Petrovich.
- Mas a dificuldade reside no cosê-lo; está completamente podre, tão podre que não aguenta a linha.
- Podes aproveitá-lo, cosendo uns remendos por cima.
- Uns remendos por cima! Mas não se segura numa fazenda neste estado! O próprio vento é capaz de o arrancar.
- Nesse caso, reforça então a fazenda por dentro, e ficará bem...
- Não - objectou Petrovich com decisão -, nada se pode fazer. O melhor, visto que se aproxima agora o maior frio do Inverno, será você fazer umas polainas desta fazenda. Sempre lhe resguardarão as pernas melhor do que as meias, que são apenas invenção dos Alemães para ganhar dinheiro. (Agradava a Petrovich aproveitar a ocasião para insultar os Alemães.) Quanto ao capote, o melhor é mandar fazer um novo.
Ao ouvir a palavra "novo", toldaram-se os olhos de Acaqui Acaquievich, que começou a ver andar à roda de si tudo quanto se encontrava naquela sala. Só via claramente a figura do general na caixa do rapé.
- Novo? - dizia como em sonho. - Desgraçadamente, não tenho dinheiro para tal.
- Sim, novo - repetia Petrovich com uma calma brutal.
- E, sendo novo, a quanto montaria?
- Quanto custaria?
- Sim.
- Teria de gastar uns cento e cinquenta rublos - disse Petrovich, cerrando os lábios.
Era partidário dos efeitos fortes; agradava-lhe desconcertar por completo alguém e lançar um olhar de soslaio para observar a cara do assustado ao ouvi-lo.
- Cento e cinquenta rublos pelo capote! - exclamou o pobre Acaqui Acaquievich, sendo talvez este o primeiro grito desde que nasceu, já que, geralmente, se conservava em silêncio.
- Naturalmente - afirmou Petrovich. - E isso conforme seja o capote. Se levar gola de marta e bandas de seda, atira a uns duzentos.
- Por Deus, Petrovich! - disse Acaqui Acaquievich com voz suplicante, sem escutar nem pretender considerar as palavras de Petrovich ou os seus efeitos. Arranja-me este como puder ser, para que ainda me sirva algum tempo.
- De modo nenhum; seria perder trabalho e dinheiro - respondeu Petrovich.
Depois de ouvir aquelas palavras, Acaqui Acaquievich saiu, acabrunhado. Petrovich viu-o caminhar pela rua e permaneceu largo tempo de pé, com os lábios cerrados, sem fazer caso do trabalho, tal era o seu contentamento por não se ter rebaixado nem traído a sua nobre arte de alfaiate.
Quando Acaqui Acaquievich chegou à rua, encontrava-se como num sonho. "Alguém viu já semelhante coisa?", dizia ele com os seus botões, "Nunca pensaria que podia chegar a tal..." E logo, após um silêncio, acrescentou: "Ora aí está! Cheguei finalmente a isto! Nunca teria suposto que fosse assim." E, depois de outro largo silêncio, voltou a exclamar: "Assim é, pois! Já não há esperança possível... Acabou-se... As circunstâncias requerem-no!"
E, dito isto, em vez de ir para casa, seguiu na direcção contrária, sem se dar de maneira alguma conta disso. Enquanto caminhava, roçou por ele um limpa-chaminés, que o sujou no ombro, e caiu-lhe também em cima um pedaço de argamassa de uma casa em construção. Não se apercebia de nada, e, mais tarde, quando tropeçou contra um guarda municipal, ao mudar este a espingarda para tirar tabaco do bolso, despertou ao ouvir o mesmo admoestá-lo:
- Porque te metes debaixo do meu nariz? Não te chega a rua?
Aquilo obrigou-o a reflectir e a dirigir-se a casa. Só então lhe foi dado concentrar os seus pensamentos e viu com clareza a sua presente situação; começou a falar com os seus botões, sem a anterior incoerência, mas meditando com lógica, como se revelasse a um amigo inteligente o mais intimo segredo do seu coração. "Não", monologava Acaqui Acaquievich. "Não convém hoje tratar com Petrovich. Hoje, a mulher... deve ter-lhe dado uma sova. O melhor será voltar domingo de manhã: depois da bebedeira da véspera estará ainda com o olho pisco e sonolento, e, como precisa de voltar a beber e a mulher não lhe dá dinheiro, se eu lhe passar uns rublos para a mão, deixa-se convencer e conserta-me o capote."
Assim ia monologando e assim se ia animando Acaqui Acaquievich. Esperou até ao domingo seguinte e, depois de ver a mulher de Petrovich sair de casa, entrou com ar decidido. Custava muitíssimo a Petrovich, com efeito, abrir o seu único olho depois do que bebera na véspera, e cabeceava, sonolento; mas, apenas soube do que se tratava, pareceu que se apossara dele o Diabo.
- Não pode ser! - disse. - Tem de se lazer outro novo.
Acaqui Acaquievich meteu-lhe uns copeques na mão.
- Obrigado, senhor. Agora poderei fortalecer-me um pouco à sua saúde - disse o alfaiate. - E não se preocupe você com o capote: não serve para nada. Far-lhe-ei um novo; e, quanto ao preço, havemos de entender-nos.
Acaqui Acaquievich preferia que ele lhe cosesse o velho, mas Petrovich não fazia caso das suas palavras e insistia:
- Far-lhe-ei um novo, com toda a perfeição; tenha confiança em mim, farei quanto puder. E, se for preciso, até lhe ponho botões de prata, pois agora estão na moda.
E Acaqui Acaquievich, vendo que não tinha outra solução senão fazer um capote novo, sentia um grande pavor na sua alma. Era necessário, tinha de ser, mas o dinheiro? Podia, certamente, contar com a gratificação que receberia nas próximas festas, mas esse dinheiro estava há muito já destinado. Necessitava fazer umas calças novas, pagar ao sapateiro uma dívida antiga de umas meias solas e, além disso, tinha de mandar fazer, sem falta, três camisas novas, duas das quais brancas; numa palavra, o dinheiro estava já destinado, e, ainda que tivesse um director compreensivo, capaz de conceder uma gratificação de quarenta e cinco ou cinquenta rublos, em vez de quarenta, o restante seria apenas uma insignificância para a soma de que necessitava para o capote - uma verdadeira gota de água no oceano.
Sabia perfeitamente que Petrovich costumava fazer preços exorbitantes, de tal modo que até a mulher não podia conter-se e exclamava: "Mas tu estás com o juízo todo? Umas vezes aceitas o trabalho por nada, e agora atreves-te a pedir um preço que nem tu próprio vales." E sabia perfeitamente também que Petrovich acabaria por fazer-lhe o capote por oitenta rublos; entretanto, donde haviam de vir-lhe esses oitenta rublos? Metade ainda podia arranjar-se: metade, sim, e talvez um pouco mais; mas onde conseguir a outra metade? Antes de prosseguirmos, deve o leitor ficar a saber donde lhe podia vir a primeira metade.
Acaqui Acaquievich tinha o costume de reservar uma pequena quantia por cada rublo que gastava num mealheiro pequeno e fechado, com uma larga abertura. Ao cabo de cada meio ano contava o dinheiro em cobre e trocava-o por moedas de prata. Assim procedera durante muito tempo, e, desta maneira, ao fim de alguns anos reunira uma soma superior a quarenta rublos. A metade, por conseguinte, encontrava-se nas suas mãos; mas a outra metade? Onde obter os outros quarenta rublos? Acaqui Acaquievich
pensava, pensava, e chegou à conclusão de que o único recurso era reduzir até ao extremo possível todos os gastos ordinários durante um ano, abolir o hábito de tomar chá à noite, não acender a luz e, quando precisasse de copiar qualquer coisa, ir ao quarto da patroa e trabalhar à luz da sua vela; ao caminhar pela rua, fazer por andar o mais cuidadosamente possível e evitar as pedras ou pedaços de ferro, para não gastar rapidamente as solas dos sapatos; dar à lavadeira a roupa branca com a menor freqüência possível e, para que se não gastasse, tirá-la logo ao chegar a casa e substitui-la pela camisa de dormir, que era de algodão, muito velha, e não podia durar muito mais.
Para dizer inteiramente a verdade, consignaremos que, a principio, lhe custou muito habituar-se a todas estas privações, mas depois, uma vez acostumado, chegou até a suprimir a refeição da noite; em compensação, alimentava-se espiritualmente, pensando no seu futuro capote. A partir daí pareceu encontrar um complemento do seu ser, como se fora casar, ou como se se sentisse outro, como se não estivesse sozinho na vida, como se tivesse encontrado uma companheira que aceitasse seguir juntamente com ele pela estrada da vida; ora esta companheira não era outra senão o seu capote, de grosso forro, sem a menor passagem. Tornou-se mais animado e de carácter mais firme, como um homem que se propôs um fim determinado. Do seu rosto e até dos seus passos desapareceram a dúvida e a indecisão. No seu olhar aparecia mesmo um certo lampejo; no cérebro passavam-lhe, como relâmpagos, pensamentos audazes e temerários: "Porque não havia de pôr a gola de marta?" Com estas ideias tornou-se um tanto distraído. Uma ocasião, ao copiar um oficio, esteve a ponto de fazer
um erro; quase gritou em voz alta "ai!" e fez o sinal da cruz. Uma vez por mês, pelo menos, visitava Petrovich, com o propósito de lhe falar acerca do capote: onde conviria comprar a fazenda, de que cor e por que preço sairia; e, embora um pouco preocupado, voltava sempre satisfeito a casa, pensando que em breve chegaria o momento de comprar tudo o que era necessário e ter pronto o capote.
O caso resolveu-se ainda mais rapidamente do que ele pensava. Contra toda a sua expectativa, o director concedeu-lhe não só quarenta ou quarenta e cinco, mas sessenta rublos. E esta circunstância apressou o caso. Dois ou três meses mais de pequenos jejuns e Acaqui Acaquievich reunia exactamente oitenta rublos. E o seu coração, de ordinário tranquilo, começou a bater fortemente.
Logo no primeiro dia dirigiu-se, com Petrovich, a um armazém. Compraram uma fazenda muito bonita e que não era cara, porque estes tinham sido os seus pensamentos durante os últimos seis meses, e não se teria passado um mês sem que tivesse ido ao armazém informar-se dos preços. Mestre Petrovich asseverava, pelo seu lado, que não havia melhor fazenda. Escolheram um forro de seda indiana, tão bom e tão forte que, no dizer de Petrovich, dificilmente poderia encontrar-se seda que lhe fosse superior no aspecto e no brilho. Não compraram marta porque, com efeito, o preço era exorbitante; mas escolheram, em compensação, pele de gato, a melhor que havia no armazém de pelagem, tão fina que, de longe, qualquer a tomaria por marta. Petrovich ocupou-se duas semanas completas na feitura do capote: era preciso pespontar muito; doutro modo tê-lo-ia terminado antes. Pelo seu trabalho cobrou ele doze rublos, e menos não podia levar: tudo fora cosido com costura dupla e em cada uma delas recorrera Petrovich à ajuda dos seus próprios dentes.
Foi - não é fácil precisar qual, mas é quase certo - o dia mais solene da vida de Acaqui Acaquievich aquele em que, por fim, Petrovich lhe trouxe o capote. Trouxe-o numa manhã, no instante preciso em que Acaqui Acaquievich ia a sair, para a repartição. Em nenhuma outra altura teria sido mais oportuno, pois já o frio começara a fazer-se sentir com intensidade e ameaçava vir ainda a ser mais agreste. Apareceu Petrovich com o capote, como convém a um bom alfaiate. Via-se no seu rosto uma expressão tão orgulhosa como Acaqui Acaquievich jamais vira. Parecia sentir com intensidade que a sua obra não era nenhuma pequenez e que existia um abismo de diferença entre os alfaiates que só põem remendos e os que confeccionam roupa nova. Desembrulhou a obra (que trazia envolta numa toalha de chita, que dobrou e meteu cuidadosamente no bolso). Uma vez destapado o capote, mirou-o com grande satisfação, segurando-o com ambas as mãos, colocou-o habilmente nos ombros de Acaqui Acaquievich e esticou-o muito cuidadosamente, sem o abotoar. Acaqui Acaquievich, como homem experiente, desejara verificar o comprimento das mangas; Petrovich ajudou-o, vendo-se logo que também estas ficavam a primor. Numa palavra, o capote estava feito com irrepreensível correcção. Petrovich não perdeu a oportunidade de dizer que aquilo só era possível por viver, sem tabuleta, numa rua tão modesta; demais a mais já há muito sabia Acaqui Acaquievich porque lhe cobrara tão barato; se fosse um alfaiate de Nevsqui Prospect (Avenida do Neva), teria cobrado, só pelo trabalho, setenta e cinco rublos. A Acaqui Acaquievich não agradava falar mais deste assunto com Petrovich, a tal ponto temia aquelas formidáveis quantias com que este o assaltava!
Pagou-lhe, agradeceu-lhe e, envergando já o seu capote novo, dirigiu-se à repartição. Petrovich seguiu-o e, parando a meio da rua, contemplou demoradamente a sua obra, e até passou para o outro lado, adiantou-se e voltou para trás, para observar de novo o capote de frente. Entretanto, Acaqui Acaquievich caminhava com um ar exuberante. Sentia a todo o momento que levava aos ombros um capote novo e, até, por diversas vezes, sorriu de íntimo prazer. Experimentava, com efeito, duas vantagens: a primeira, sentir mais calor; a segunda, sentir-se outro. Não se demorou pelo caminho e chegou rapidamente à repartição; entregou o capote ao porteiro e, olhando à direita e à esquerda, recomendou-o ao seu especial cuidado. Não se sabe de que maneira, o certo é que correu, sem demora, por toda a repartição que Acaqui Acaquievich tinha um capote novo e que a velha capinha desaparecera. Todos correram à portaria a admirar o novo capote de Acaqui Acaquievich. Desataram a felicitá-lo e deram-lhe as boas-vindas, de tal maneira que ele começou por sorrir de contentamento e acabou por se envergonhar. Quando o rodearam todos, dizendo que era preciso molhar o capote novo e que, pelo menos, tinha de lhes pagar uma bebida, Acaqui Acaquievich perdeu a calma sem saber que responder nem como defender-se. Afirmava, muito corado, que não era um capote novo, mas velho. Por último, um dos funcionários, ajudante do chefe, talvez para demonstrar que não era orgulhoso e que sabia tratar com os inferiores, disse:
- Pois, então, fá-lo-ei eu em vez de Acaqui Acaquievich, e convido-os a tomar hoje o chá em minha casa; até calha bem, por ser o dia do meu aniversário.
Os funcionários, como é de supor, felicitaram o ajudante do chefe e aceitaram o seu convite. Acaqui Acaquievich quis desculpar-se, mas todos o increparam, dizendo-lhe que era um malcriado, que devia envergonhar-se daquela incorrecção, e isto de maneira tal que não pôde escusar-se. Por outro lado, agradava-lhe pensar que iria ao chá com o seu capote novo. Todo aquele dia pôde considerar-se como de festa para Acaqui Acaquievich. Voltou a casa na mesma disposição de espirito, tirou o capote e pendurou-o cuidadosamente; regozijou-se mais uma vez com a qualidade da fazenda e do forro e até vestiu o capote velho para fazer a comparação. Ao ver-se, sorriu: tão grande era a diferença! E ainda muito depois de comer ele se sorria, e mal pensava nas novas possibilidades de vida que o capote lhe proporcionava. Comeu alegremente, não escreveu nem o mais insignificante papel e, com voluptuosidade, deitou-se na cama até ao escurecer. Logo, sem mais demora, se vestiu e, com o capote pelos ombros, saiu para a rua. Sinto não poder dizer onde habitava o funcionário anfitrião: a minha memória começa a fraquejar e os nomes das ruas de Sampetersburgo misturaram-se-me de tal maneira na cabeça que me é muito difícil ordená-las. Seja como for, o facto é que vivia numa das melhores artérias da cidade, bastante longe de Acaqui Acaquievich. Teve este de seguir primeiramente através de ruas solitárias, de iluminação escassa; mas, à medida que se aproximava do domicílio do funcionário, as ruas eram mais animadas, a iluminação maior e mais intensa; os viandantes iam e vinham, mais frequentes, multiplicavam-se as mulheres elegantemente vestidas; os homens levavam golas de pele de castor; quase não se viam já os bancos de madeira esburacada; os cocheiros, de libré dourada e gorro de veludo carmesim, sobre os trenós envernizados e forrados de peles, vagueavam pelas ruas... Acaqui Acaquievich admirava tudo aquilo como uma novidade; há muitos anos que não saía à noite. Cheio de curiosidade, deteve-se diante de uma montra para ver o quadro de uma mulher belíssima a descalçar um sapato, mostrando assim toda a perna escultural; por detrás dela assomava a uma porta um sujeito de patilhas e com uma bonita barba ao gosto espanhol. Acaqui Acaquievich abanou a cabeça, sorrindo, e prosseguiu o seu caminho. Porque sorria ele? Talvez por lhe serem desconhecidas todas as pessoas com quem cruzava, ou talvez por um sentimento oculto em relação a esse ambiente, ou então porque pensava como pensam funcionários: "Vá! Estes Franceses! O que se diz! Que inveja causa! Há que ver, precisamente e tal!...", ou então seria isto que pensava: que não é possível perscrutar a alma de um homem e apreender tudo quanto pensa. Chegou por fim à casa em que habitava o ajudante do chefe. Este vivia à grande: a escadaria era iluminada por um magnífico candelabro; a habitação ficava no segundo
andar.
Ao entrar na antecâmara, Acaqui Acaquievich viu uma fila de taças. Entre estas, a meio do compartimento, fervia um samovar, que espargia volutas de vapor. Pelas paredes estavam pendurados os vários capotes e agasalhos, alguns dos quais tinham golas de castor ou de veludo. Ouviam-se por detrás da parede ruídos e diálogos, que se tornaram mais próximos quando um criado abriu a porta e saiu com chávenas e taças vazias, uma compoteira e uma bandeja com pastéis. Concluía-se que os funcionários se encontravam reunidos já há algum tempo e que acabavam de tomar a primeira chávena de chá. Acaqui Acaquievich despiu o capote sozinho e penetrou no salão; ante ele resplandeceram as velas, os funcionários, os cachimbos, as mesas de jogo, e surpreenderam-no confusamente os diversos ruídos; ouvia-se em todas as direcções rumor de conversas e movimentos de cadeiras.
Permaneceu atónito no centro do salão, pensando no que devia fazer. Mas já tinham reparado nele; rodearam-no, com alguns gritos, e levaram-no à antecâmara, para que lhes mostrasse o capote. Acaqui Acaquievich encontrava-se um tanto aflito, mas, como homem de bom coração, não pôde deixar de alegrar-se ao ver como todos elogiavam o seu capote. Depois, claro está, deixaram-no a ele e ao seu capote e voltaram para as mesas de jogo.
Tudo aquilo - ruído, conversação, grande número de convivas - era para Acaqui Acaquievich como que um sonho. Não sabia verdadeiramente o que experimentava, nem onde havia de colocar as mãos, os pés, o seu próprio ser; por último, aproximou-se dos jogadores, olhou as cartas, contemplou ora um, ora outro, e pouco depois começou a bocejar, sentindo que se aborrecia, tanto mais que havia passado há muito a hora a que costumava deitar-se. Quis, por conseguinte, despedir-se do dono da casa, mas não lho consentiram, alegando que tinha de beber uma taça de champanhe em honra do novo elemento da sua indumentária. Uma hora mais tarde foi servida a ceia, composta de fiambre, vitela, empada, pastéis e champanhe. Acaqui Acaquievich teve de beber duas taças, sentindo que, depois delas, se tornava ainda mais alegre e ruidoso tudo quanto o cercava; entretanto, não se esqueceu de que dera já a meia-noite, e, portanto, muito tarde para estar fora de casa. A fim de que ninguém o obrigasse a permanecer ali, saiu silenciosamente do salão e procurou o seu capote, que, não sem íntimo desgosto, encontrou caído no chão; apanhou-o, sacudiu-o, limpou-o, pô-lo pelos ombros, desceu as escadas e encontrou-se ao ar livre.
Na rua tudo estava iluminado. Algumas tabernas (que são os clubes dos porteiros e gente parecida) achavam-se ainda abertas; das outras, já fechadas, saiam longos feixes de luz por entre os interstícios das portas, mostrando que não estavam sem freguesia, criados certamente que se entretinham a falar e a dizer mal dos patrões. Acaqui Acaquievich caminhava com alegre disposição de ânimo e quase se sentiu capaz de correr atrás de uma dama que passou veloz por diante dele, dama cujo corpo se lhe afigurou extraordinariamente flexível. Dominou-se, no entanto, e prosseguiu muito lentamente, admirado de si próprio. Em breve se estenderam ante ele as ruas desertas, onde de dia não se notava alegria alguma, quanto mais de noite. Apareciam-lhe agora mais profundas e isoladas, luziam os candeeiros cada vez menos, porque já o azeite se ia esgotando; começavam a surgir as casas de madeira dos bairros mais pobres; em parte alguma se via vivalma; a única luz era agora a que reflectia a neve do chão; e sobre a neve recortavam-se lugubremente as sombras das baixas choupanas, de janelas cerradas. Aproximava-se do lugar em que a rua desembocava numa praça enorme, mal se podendo ver as casas do outro lado, como se se tratasse de um terrível deserto.
Ao longe (só Deus sabe onde!) brilhava o fogo de alguma guarita, que parecia encontrar-se nos confins do mundo. A boa disposição de Acaqui Acaquievich passara já. Penetrou na praça, não sem certo terror, como se o seu coração pressentisse perigo. Olhou para trás de si e para o lado; em volta via-se apenas o espaço deserto. "É melhor não olhar", pensou. Continuou a avançar, de olhos fechados. Quando os abriu, para ver se estava já próximo do outro extremo da praça, observou que tinha diante de si gente de bigode. Mas nada mais pôde distinguir. Toldaram-se-lhe os olhos e recebeu uma pancada no peito. "Este capote é meu!", disse um dos homens, agarrando-lhe pela gola. Acaqui Acaquievich quis ainda gritar: "Ó da guarda!", mas o outro colocou-lhe a mão na boca e disse: "Desgraçado de ti se gritas!" O nosso herói só se deu conta de que lhe arrancavam o capote e de que lhe davam um violento pontapé. Caiu então de costas na neve e nada mais sentiu. Voltou a si minutos depois, mas já não viu ninguém. Sentindo a frialdade do chão e a falta do capote, começou a gritar; parecia entretanto que a sua voz se perdia naquela praça enorme e não atingia o outro lado. Desesperado, sem parar de gritar, pôs-se a correr em direcção à guarita, atrás da qual estava um soldado apoiado à sua arma; parecia perguntar-se, com curiosidade, quem diabo era aquele que vinha assim a correr e a gritar com voz humana. Acaqui Acaquievich chegou, ofegante, junto dele e começou, com voz aguda, a clamar que se tinha embriagado e que nada mais sabia senão que dois homens o tinham roubado. O soldado replicou nada ter visto; tinha observado apenas que dois homens o deixavam no meio da praça, mas supusera que eram seus amigos; acrescentou que, em vez de queixar-se ali, em vão, devia ir no dia seguinte à esquadra, onde por certo investigariam acerca de quem lhe roubara o capote.
Acaqui Acaquievich dirigiu-se para casa num estado lamentável: os cabelos, que ainda lhe restavam, em pequenas quantidades, nas têmporas e na nuca, totalmente desgrenhados; o peito, as costas e as calças cobertos de neve. A velha patroa, ao ouvir o tremendo ruído do batente da porta, saltou rapidamente da cama, calçando apenas uma meia, e foi a correr abrir aquela, segurando pudibundamente a camisa contra os seios; mal abriu, ao ver Acaqui Acaquievich, esqueceu o seu pudor. Quando o hóspede contou o que lhe sucedera, ela cruzou as mãos de espanto e disse ser preciso recorrer
sem demora ao capitão da polícia, "porque o tenente nada mais faz que ouvir, fazer muitas promessas e dar tempo ao tempo"; melhor era ir directamente ao capitão, de quem ela tinha boas informações, pois Ana, que fora sua cozinheira estava agora de ama em casa dele. Acrescentou que o via muitas vezes, principalmente ao domingo, na igreja, onde rezava com muita devoção e, ao mesmo tempo, olhava amigavelmente para toda a gente, parecendo um homem bondoso. Depois de ouvir este conselho,
Acaqui Acaquievich, amargurado, retirou-se para a sua habitação. Como ele passou a noite... compreendê-lo-á quem tenha capacidade de se imaginar na situação de uma outra pessoa. Na manhã seguinte, muito cedo, dirigiu-se ao Comissariado, mas disseram-lhe que o capitão estava ainda a dormir; foi às dez e disseram-lhe outra vez: "Está a dormir"; foi às onze e responderam-lhe: "Não está"; à hora de comer... Mas os amanuenses não lhe consentiam de maneira nenhuma vê-lo, e queriam saber exactamente do que se tratava e o que acontecera; de maneira que Acaqui Acaquievich quis provar, uma vez na vida, que tinha energia e disse, com ar decidido, que precisava de falar ao inspector, que não consentia que lhe negassem a entrada, que vinha da repartição tal, do ministério tal, para tratar de um assunto de serviço, que se veria obrigado a apresentar reclamações contra eles e saberiam então como elas doíam.
Contra isto não se atreveram os amanuenses a dizer nada e foram anunciá-lo ao inspector. Este tomou distraídamente nota do roubo do capote. Em vez de atender ao ponto principal da questão, começou a perguntar a Acaqui Acaquievich: "Porque voltava tão tarde a casa? Tinha passado a noite nalguma casa de perdição?" - de tal maneira que, ao sair, Acaqui Acaquievich não sabia já bem se lhe tinha ou não exposto o assunto do capote.
Faltou nesse dia ao serviço, pela primeira vez na sua vida. No dia seguinte apresentou-se pálido e com o antigo capote, que parecia agora muito mais esfarrapado.
A noticia do roubo - apesar de alguns funcionários aproveitarem a ocasião para novas zombarias - comoveu, no entanto, muitos. Resolveram fazer uma subscrição, mas o resultado foi insignificante: os empregados da repartição tinham subscrito já para o retrato do director e tinham comprado, por indicação do chefe, amigo do autor, um livro que acabara de publicar-se. Um, mais disposto a compadecer-se, decidiu, pelo menos, ajudar Acaqui Acaquievich com um bom conselho e disse-lhe que não devia ir à Inspecção, pois podia suceder que, mesmo que o inspector encontrasse o capote, este
continuasse nas mãos da polícia, se não fosse capaz de demonstrar legalmente que lhe pertencia; melhor seria dirigir-se a uma "alta personalidade", com a mediação da qual pudesse dar-se mais rapidez ao andamento do caso.
Não pareceu mal a Acaqui Acaquievich tal conselho, e por isso decidiu dirigir-se a uma "alta personalidade". Convém saber que essa "alta personalidade" ascendera há pouco tempo, tendo sido, até ai, completamente ignorada. A sua posição, não sendo, aliás, das mais elevadas, comparada a outras, não era destituída de relevo. Sempre se
encontrará gente disposta a apreciar estas personalidades que carecem de intrínseca importância e que, no entanto, são elevadas em relação a muitos. A personalidade a que nos referimos esforçara-se por se evidenciar de muitas maneiras, a saber: introduzira o costume de que os funcionários inferiores o esperassem na escada quando entrava de serviço e estabelecera que ninguém teria directo acesso à sua presença, devendo observar-se estritamente a ordem seguinte: o amanuense devia entregar a petição ao oficial; este, por sua vez, entregá-la-ia ao funcionário de categoria
imediatamente superior, até chegar, de grau em grau, ao seu destino. Assim se encontra tudo infectado na santa Rússia pela imitação: julga cada um desempenhar bem o seu importante papel imitando o que lhe está acima.
Diz-se até que certo conselheiro titular, quando o fizeram director de uma repartição modestíssima, fez separar, por um tabique, o seu gabinete daquilo a que ele chamava "o pessoal de serviço", pondo à porta dois contínuos agaloados, que abriam a porta a quem chegava: e convém saber que nesta importante secretaria de Estado pouco mais cabia que uma vulgar secretária.
O modo de receber, assim como os gestos e hábitos da "alta personalidade", eram graves e majestosos, mas um tanto complicados. O fundamento principal do seu sistema era a disciplina. "Disciplina, disciplina e... disciplina", costumava ele dizer. E ao repetir pela terceira vez esta palavra fixava intensamente a pessoa a quem se dirigia, ainda mesmo sem o menor motivo para tal, pois os dez funcionários de que se compunha o mecanismo burocrático da repartição andavam sempre num verdadeiro terror. A conversação da "alta personalidade" com os inferiores recaia, em geral, no tema disciplina e compunha-se de frases deste género: "Como se atreve você? Sabe com quem está a falar? Sabe bem quem é que se encontra diante de si?" Era, noutros aspectos, homem de bom coração, afável e até serviçal para os da sua classe; mas a patente de general fizera-lhe perder o senso comum. Desde que recebera a nomeação, andava desvairado, descontrolara-se e não se apercebia bem do que se passava nele próprio. Se tratava com iguais, era um homem correcto, ordenado, e até, sob muitos aspectos; inteligente, mas, apenas se encontrava num grupo de gente de situação social inferior, já não sabia onde tinha a mão direita: tornava-se hirto e silencioso e a sua situação era tanto mais digna de dó quanto é certo que ele era o primeiro a saber que poderia passar o tempo de maneira muito mais agradável. Transparecia, às vezes, nos seus olhos o desejo de entabular uma conversa interessante com os funcionários; mas paralisava-o este pensamento: "Não seria excesso da sua parte? Não seria excesso de familiaridade, com que a sua dignidade perigasse?" Como consequência de
tais reflexões, permanecia eternamente só, impenetrável, limitando-se a emitir um ou outro monossílabo. Conquistou por esta razão o título de "o homem que se aborrece".
Foi perante esta "alta personalidade" que se apresentou Açaqui Acaquievich, precisamente no momento menos favorável, muito adverso para ele, embora o mais oportuno possível para a "alta personalidade", que nessa própria ocasião se encontrava no seu gabinete e dialogava muito alegremente com um antigo conhecido, companheiro de infância, a quem há já vários anos não via. Tal foi o momento em que lhe anunciaram um tal Baquemaquine. Perguntou bruscamente: "Quem é?" Responderam-lhe que "um funcionário". "Bom, que espere; não tenho agora tempo", replicou a "alta personalidade". É preciso dizer-se que a "alta personalidade" mentia descaradamente. Tinha tempo; já acabara a conversa entre os dois amigos e estavam naquele ponto em que se recorre a frases desta espécie: "Assim era nesse tempo, Ivan Abramovich." "E como dizes, Estêvão Valarmovich."
Entretanto, mandou que o funcionário esperasse, com o propósito de demonstrar ao amigo, há muito retirado do serviço oficial numa casinha da aldeia, quanto tempo tinham de esperar os funcionários na sua antecâmara.
Finalmente, depois de terem falado quanto quiseram (ou, melhor dizendo, depois de terem calado o suficiente) e terem fumado um cigarro sentados nas comodíssimas poltronas, de repente, como se por casualidade se recordasse, disse ao secretário, que estava de pé, junto à porta, com uns papéis para informar: "Se ainda ai está esperando o funcionário, diga que pode entrar."
Vendo o humilde Acaqui Acaquievich, com o seu velho uniforme, voltou a cara de repente e perguntou: "Que deseja?", com o tom de voz brusco e forte que antes experimentara em casa para tais emergências. Acaqui Acaquievich, que era um homem muito respeitador, atrapalhou-se um pouco e, com a liberdade com que lhe era possível dispor da sua língua, explicou, juntando agora com mais frequência partículas desnecessárias, que o capote era completamente novo, que lho tinham roubado de um modo desumano, que se lhe dirigia para que interviesse, escrevendo ao inspector, fazendo aparecer o capote.
Pareceu ao general que tais maneiras eram demasiado familiares,
Que é isso, senhor? - perguntou bruscamente.
Não conhece o regulamento? Donde vem? Não sabe como se procede em tais casos?
A primeira coisa que devia fazer era dirigir um requerimento à secretaria; esse requerimento seria então remetido, pelas vias competentes, ao chefe de repartição; este, por seu turno, remetê-lo-ia ao secretário, e o secretário tê-lo-ia remetido a mim...
- Mas, Excelência... - disse Acaqui Acaquievich, esforçando-se por reunir a pouca força que encerrava a sua alma e sentindo que transpirava de modo atroz. - Eu, Excelência, atrevi-me a apresentar-me directamente, porque os tais secretários... é gente em que se não pode confiar...
- Quê? ... O quê?... O quê?... - clamou a "alta personalidade"...
- Onde foi o senhor buscar essa ideia? Donde lhe surgiram tais pensamentos? Que audácia se está generalizando entre os jovens contra os superiores e a hierarquia?
A "alta personalidade" demonstrava assim que não reparara em Acaqui Acaquievich, o qual estava já nos 50; doutra maneira, chamar-lhe jovem seria bastante estranho.
- Sabe com quem está a falar? Sabe bem quem tem diante de si? Percebe isto? Percebe?, pergunto eu.
E deu uma forte patada no chão, imprimindo à voz tanta energia que mesmo um outro que não fosse Acaqui Acaquievich teria ficado bastante assustado. Este, porém, deveras aterrado, sentiu um abalo interior e começou a tremer convulsivamente; mal se podia aguentar de pé, e, se um empregado não acorresse a ampará-lo, teria caído ao chão; retiraram-no hirto do gabinete. Mas a "alta personalidade" estava contente com o efeito, que fora muito além de todos os seus cálculos. Embriagado com a ideia de que a sua voz forte era capaz de perturbar um homem até àquele ponto, olhou de lado para observar a impressão que fizera a cena, notando, não sem profundo prazer, que o amigo se encontrava na mesma situação indefinível e que até começava a sentir angústia.
Do modo como saíra do gabinete da "alta personalidade" e como chegara à rua nunca Acaqui Acaquievich foi capaz de se recordar. Não podia fixar-se no que acontecera: jamais, em toda a sua vida, um general, e demais o vento e a neve fustigavam-no; seguia pelo meio da rua, com a boca aberta, perplexo; o vento soprava, soprava, como é habitual em Sampetersburgo soprar o vento nas quatro direcções, de todas as encruzilhadas. Em certo momento a garganta resfriou-se-lhe, começou a sentir os sintomas de uma angina e, quando chegou a casa, não tinha sequer forças para proferir uma palavra. Deitou-se na cama com o pescoço exageradamente inchado. No dia seguinte sobreveio uma febre altíssima. Graças à magnânima ajuda do clima sampetersburguês, a enfermidade progrediu mais rápidamente do que poderia esperar-se, e quando chegou o doutor tomou-lhe o pulso e entendeu que devia limitar-se a receitar qualquer coisa para o enfermo não morrer sem o benéfico auxílio da medicina; quanto ao mais, declarou que não viveria além de dia e meio; dirigiu-se à patroa, dizendo: "E a senhora não perca tempo: mande vir um caixão de pinho, pois um de mogno é muito mais caro."
Não sabemos se Acaqui Acaquievich ouviu essas palavras proferidas acerca
da sua sorte; e, no caso de as ter ouvido, não sabemos se foram susceptíveis de o emocionar, porquanto permaneceu constantemente no delírio da febre. Visionava sucessivos conjuntos de memórias e de fantasias: ia visitar Petrovich e encarregava-o de lhe fazer um capote, mas com uma defesa contra os ladrões, que lhe surgiam sem cessar por baixo da cama, e pedia à patroa que lhe trouxesse um deles preso e coberto com a manta; logo perguntava porque lhe traziam um capote velho, quando possuía um
novo; depois julgava encontrar-se diante do general, ouvindo os seus insultos, e dizia: "Perdoe Vossa Excelência"; por último praguejava nos termos mais grosseiros, de tal modo que a velha hospedeira se benzia e persignava, pois nunca tinha ouvido sair da boca dele tais palavrões, tanto mais quanto essas palavras eram contraditórias com as que anteriormente proferira, e principalmente com a expressão "Vossa Excelência". Começou depois a falar sem o mínimo sentido, de tal modo que era impossível perceber fosse o que fosse; só podia inferir-se que as expressões incoerentes dos seus pensamentos convergiam para um único e idêntico objectivo: o capote. Finalmente, o pobre Acaqui Acaquievich morreu. Não foi selada a habitação, nem coisa alguma arrolada; em primeiro lugar, porque não existiam sucessores, e, em segundo lugar, porque a sua herança era, realmente, muito pequena, a saber: um embrulhinho com penas de ganso, um livro de papel branco do usado nos ofícios, três pares de coturnos, dois ou três botões caídos das calças e o capote já nosso conhecido. Só Deus sabe para quem tudo isso ficou; supomos, aliás, que não interessa aos leitores este pormenor da nossa narrativa. Levaram Acaqui Acaquievich a enterrar. E Sampetersburgo ficou sem Acaqui Acaquievich, como se nunca ali tivesse existido.
Desapareceu e ocultou-se um ser a quem ninguém protegera, a quem ninguém dedicara afeição e que nem sequer atraíra o interesse de qualquer naturalista, um desses indivíduos que não desdenham pôr num alfinete a mosca vulgar e observá-la ao microscópio; um homem que atraíra a zombaria dos seus companheiros de repartição e que desceu à sepultura sem ter realizado qualquer acto excepcional; antes pelo contrário, a quem nada importava, ainda que no fim da sua vida brilhasse para ele a luz sob a forma de um capote, reanimando um momento fugaz a sua pobre vida, e sobre quem caiu depois a desgraça em grau superior às suas forças, como cai também, por vezes, sobre os mais poderosos da Terra... Poucos dias depois da sua morte compareceu na sua residência um contínuo, enviado pela repartição, com ordem para se apresentar imediatamente; exigia-o o chefe; mas o homem teve de voltar sozinho, levando a informação de que o funcionário não podia apresentar-se. Tendo-lhe sido perguntado: "Porque não pode?", respondeu estas palavras: "Não pode: morreu; há quatro dias que o enterraram." Desta maneira se conheceu na repartição a morte de Acaqui Açaquievich, e no dia seguinte já estava sentado no seu lugar um novo funcionário, muito mais alto, que não desenhava as letras em linhas tão rectas, mas, pelo contrário, em linhas muito mais inclinadas e contrafeitas,
Mas quem poderia imaginar que ainda não dissemos tudo acerca de Acaqui Acaquievich, condenado a tornar-se famoso alguns tempos depois da morte, como recompensa de uma vida que passou ignorada? Sucedeu efectivamente isso, e a nossa pobre história tem uma abrupta conclusão. Começou a difundir-se por Sampetersburgo o rumor de que na ponte de Kaliuquine, nas ruas vizinhas e nos bairros a que ela conduzia aparecia de noite um fantasma, com aspecto de funcionário público, que procurava um capote roubado e tirava capotes de todos os ombros, sem diferençar classes ou profissões: os de gola de pele de gato, de castor, de coelho, de raposa ou de qualquer outra espécie de pele. Um dos funcionários da repartição viu com os seus próprios olhos o fantasma e reconheceu imediatamente o defunto Acaqui Acaquievich; mas produziu-lhe este tal terror que se pôs a correr quanto podia, sem se atrever a voltar a olhar para o fantasma, que o ameaçava com o dedo espetado. De todos os lados surgiam queixas de indivíduos a quem tinham desaparecido os capotes, e isso acontecia a titulares e também às altas gentes do Paço; muitos tinham-se até constipado em consequência do roubo. A polícia fez investigações para se apoderar do defunto, vivo ou morto, e castiga-lo severamente, para exemplo de outros, mas a diligência não resultou. Assim, por exemplo, um polícia de vigilância a uma das pequenas ruas de Kiriuquine, tendo agarrado o defunto pela gola (no momento em que este ia a roubar o capote de certo músico, que então tocava flauta), chamou em seu auxílio outros guardas de ronda, enquanto tirava do bolso a caixa de rapé para encher o nariz, que já lhe gelara seis vezes; mas o rapé devia ser de tal qualidade que nem sequer o morto pôde suportá-lo. Mal o polícia, fechando com o dedo a narina direita, meteu o rapé na esquerda, o defunto espirrou tão fortemente que lançou salpicos pelos olhos. E enquanto o polícia esfregava os olhos com as mãos, o defunto desaparecia. Chegaram a duvidar se, na verdade, o tinham tido na mão. Desde aí, os polícias amedrontaram-se tanto com as almas do outro mundo que não se atreviam a apanhá-las nem sequer vivas, e só de longe gritavam: "Olá, segue o teu caminho!" E o funcionário defunto começou a aparecer também na ponte Kaliuquine, suscitando terror às pessoas tímidas. Mas abandonámos por completo a "alta personalidade", verdadeira
responsável porque a nossa história tenha tido um fim fantástico. Para honra da verdade, devemos dizer, antes de mais nada, que a "alta personalidade", depois da morte do pobre Acaqui Acaquievich, sentiu alguma compaixão. A piedade não lhe era completamente estranha; o seu coração sentia impulsos de muito boas acções; simplesmente a sua categoria não lhe permitia segui-los. Mal o amigo que o visitara saiu do seu gabinete, começou a pensar no pobre Acaqui Acaquievich. E desde então, muitas vezes, quase diariamente, evocava Acaqui Acaquievich, pálido, humilde, incapaz de reagir à sua repreensão. Aquela recordação causava-lhe tão grande intranquilidade que, decorrida uma semana, resolveu enviar um funcionário a casa de Acaqui Acaquievich para se informar do que havia, como estava e se nalguma coisa podia ajudá-lo. Ao saber que morrera de febre, de um dia para o outro, comoveu-se profundamente, escutou as censuras da sua consciência e esteve um dia inteiro de mau humor.
Desejando distrair-se e esquecer aquela desagradável impressão, foi, à noite, a casa de um amigo, o que se reflectiu de um modo admirável no seu estado de espírito. Esteve animada a conversa, que decorreu agradável e amistosa; numa palavra, passou a noite muito satisfeito. Ao cear, bebeu duas taças de champanhe, que, como se sabe, é um excelente meio de aumentar a alegria. O champanhe, modificando-lhe o humor, decidiu-o a ir visitar certa senhora sua conhecida, Catarina Ivanovna, uma alemã, segundo parece, com quem mantinha afectuosas e excessivamente íntimas relações. Devemos acrescentar que a "alta personalidade" não era já um homem novo e solteiro; era casado e todos o consideravam um honrado pai de família. Tinha um filho funcionário na Chancelaria e uma filha, bonita rapariga de 16 anos, com o nariz um pouco adunco, que vinha todos os dias beijar-lhe a mão, dizendo: "Bonjour, papa!" A esposa, que não se pode dizer que fosse velha ou feia, estendia-lhe a mão para que ele lha beijasse; depois, voltando-se para o outro lado, beijava-lhe ela, por seu turno, a mão. Mas a "alta personalidade", que se encontrava, aliás, plenamente satisfeito com as ternuras domésticas, achou, no entanto, muito importante, para se impor aos amigos, ter uma amante num bairro da cidade afastado daquele onde vivia. A amante não era nem mais nova nem mais fresca do que a esposa, mas estes enigmas existem no mundo, e não é nosso propósito esmiuçá-los. Assim, pois, a "alta personalidade" saiu de casa do seu amigo e, sentando-se na carruagem, disse ao cocheiro: "Para casa de Catarina Ivanovna"; e, embrulhando-se no seu quente capote, permaneceu nesse estado agradável, como não é possível imaginar melhor para um russo, em que nada se pensa e em que, entretanto, as ideias se agitam na cabeça, cada qual mais lisonjeira, sem haver o penoso encargo de as seguir ou coordenar. Toda a sua alegria consistia em recordar o sítio onde passara a noite e todos os ditos com que fizera rir às gargalhadas o restrito e amável círculo dos seus amigos; repetia a meia voz muitos desses ditos espirituosos e observava que conservavam toda a graça dos antigos tempos, não podendo assim deixar de rir-se sozinho com vontade.
Incomodou-o subitamente a ventania que se levantara, Deus sabe donde e porquê, fustigando-o fortemente no rosto, atirando-lhe flocos de neve aos olhos, bufando-lhe na gola do capote como na vela de um navio, ou, pelo contrário, colando-lha inesperadamente à cara com força sobrenatural, de tal modo que se agitava constantemente de uma maneira e de outra, sem poder libertar-se. De repente sentiu a "alta personalidade" que alguém o agarrava muito fortemente pela gola do capote. Ao voltar-se, notou que era um indivíduo de pequena estatura, com um fato velho e coçado, e reconheceu com terror Acaqui Acaquievich.
O rosto do funcionário estava pálido e o olhar era bem o de um defunto. Mas o terror da "alta personalidade" não teve limites quando viu que a boca do morto se abria e, exalando um odor de sepultura, lhe dirigia estas palavras: "Sempre te apanhei! Agarrei-te finalmente pela gola! Preciso do teu capote! Não quiseste preocupar-te com o meu, e até me insultaste! Dá-me agora o teu!" A pobre "alta personalidade" por pouco não morreu de susto.
Era bem conhecida a sua severidade para com os inferiores e, considerando o seu aspecto enérgico, todos diziam: "Está ali uma personalidade!" No entanto, aqui, como muitos outros que posam de heróis, sentia tal pavor que, não sem razão, começou a recear cair doente. Ele próprio despiu o capote e disse para o cocheiro, com voz alterada: "Segue para casa! Sem demora!" Mal o cocheiro ouviu aquele tom de voz, que o amo só empregava nos momentos decisivos e que era acompanhado muitas vezes de alguma coisa de mais efectivo, ocultando a cabeça entre os ombros, brandiu o
chicote e a carruagem despediu como um raio. Seis minutos depois achava-se a "alta personalidade" à porta da cocheira. Pálido, amedrontado e sem capote, em vez de visitar Catarina Ivanovna, entrou em casa, ocultou-se num quarto interior e passou a noite muito inquieto. No dia seguinte de manhã, à hora do pequeno-almoço, a filha, ao vê-lo, disse imediatamente: "Como estás pálido, papá!"; mas o papa calou-se e a ninguém confessou palavra do sucedido, nem acerca do lugar onde estivera, nem onde se dirigira depois. Aquele sucesso impressionara-o fortemente. E muito poucas vezes mais lhe ouviram dizer: "Como se atreve o senhor? Sabe quem tem diante de si?"; e, se tal acontecia, nunca era sem se informar antes do que se tratava.
E o mais notável foi, todavia, que a partir daquele dia não voltou a aparecer o funcionário defunto: talvez porque o capote do general lhe ficava perfeitamente. O certo é que nunca mais se ouviu falar de um roubo de capote do mesmo género. Muitos, já se vê, não queriam ainda tranquilizar-se e contavam que em certos sítios da cidade mais afastados aparecia o funcionário defunto. Um polícia viu, com os seus próprios olhos, sair o fantasma de uma casa; mas, achando-se um tanto debilitado e falto de forças, não se atreveu a detê-lo e limitou-se a segui-lo de longe. O fantasma, em determinado sítio, deu uma volta, olhou e polícia e perguntou-lhe: "Que desejas?", mostrando um punho que não é possível observar nos seres vivos. O polícia replicou: "Nada", e voltou para trás. O fantasma, que era, no entanto, muito mais alto e tinha uns imensos bigodes, dirigiu-se com grandes passadas para a ponte de Obujo, desaparecendo nas trevas da noite.

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segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Willian Wilson - Edgar Allan Poe

Willian Wilson
Edgar Allan Poe


IMAGINAI por um Momento que me chamo William Wilson. Meu nome verdadeiro não deve manchar a página virgem que tenho diante dos olhos. Demais, tem ele sido o horror e a abominação do mundo, a vergonha e o opróbrio de minha família. Não terão os ventos indignados levado a sua infâmia incomparável até às regiões mais longínquas do globo?

- Oh! Sou o mais abandonado de todos os proscritos! 0 mundo, as suas honras, as suas flores, as suas aspirações douradas, tudo acabou para mim. E, entre as minhas esperanças e o céu, paira eternamente uma nuvem espessa, lúgubre, ilimitada!

Ainda que pudesse, não quereria encerrar nestas paginas todas as lembranças dos meus últimos anos de miséria e de crime irremissível. Esse período recente da minha vida atingiu, de repente, tais dimensões de torpeza que seria tão horrendo como difícil descrevê-lo. 0 que quero é simplesmente determinar a origem desse súbito desenvolvimento de perversidade.

Os homens, em geral, corrompem-se gradualmente; mas, de mim, a virtude desligou-se num momento, de uma vez, como se fora um manto. De uma perversidade relativamente ordinária, passei, com um salto gigantesco, a enormidades mais que heliogabálicas.

Permiti que vos conte do principio ao fim o caso, o acidente fatal, que motivou essa maldição. A morte aproxima-se e a sombra, que a precede, lançou, já, no meu coração, influência benéfica de arrependimento e de paz.

Próximo a atravessar o sombrio vale, suspiro pela piedade (ia dizer pela simpática) dos meus semelhantes. Quereria convencê-los de que fui arrastado por circunstâncias superiores à resistência humana. Desejaria que descobrisse, na vasta seara de crime que vi desenrolar, algum pequeno oásis de fatalidade para mim. Que concordassem. (e talvez não possam deixar de concordar) que nunca, num mundo cheio de tentações, apareceu alguma coisa igual a esta e que jamais criatura humana sucumbiu vítima de torturas semelhantes.

Em verdade, tudo isto não será um sonho? Acaso não morrerei vitima do horror e do mistério da mais estranha visão de todas as visões sublunares?

Sou o descendente de uma raça conhecida, desde longo tempo, pela força da imaginação e pela extrema irritabilidade de temperamento, e confirmei desde pequeno o caráter tradicional de minha família, caráter que a idade desenvolveu e que veio, mais tarde, prejudicar-me de modo tão terrível como extraordinário.

Meus pais, fracos de espírito e, além disso, sofrendo do mesmo mal, quase nada podiam fazer para modificar os maus instintos que me distinguiam. Ainda assim, fizeram algumas tentativas, mas tão fracas e mal dirigidas, que abortaram inteiramente, convertendo-se em completo triunfo para mim. Desde então, minha voz foi a lei doméstica; e, numa idade em que poucas crianças pensam ainda sair do

regaço materno, fui abandonado ao meu livre arbítrio, senhor absoluto de todas minhas ações.

As primeiras lembranças da minha vida de estudante estão ligadas a um casarão exótico, do estilo Isabel, situado numa aldeia tristonha da Inglaterra, semeada de árvores gigantescas, onde as casas eram todas de antiguidade respeitável. Na verdade, era um lugar fantástico, aquela aldeia antiga e venerável, e bem próprio para excitar a imaginação. Mesmo neste momento, sinto no espírito as impressões refrigerantes das suas avenidas, respiro as emanações das suas matas rumorosas, estremeço ainda, com indefinível voluptuosidade, à lembrança das badaladas profundas do sino, atravessando, de hora a hora, com o seu rugido súbi-

to e moroso, a quietação da atmosfera escura. onde mergulhava o campanário gótico da igreja.

A recordação destas lembranças do colégio constitui. hoje, o único prazer que me é dado ainda sentir, imerso na desgraça, como estou (desgraça, ai. demasiado real); perdoar-me-ão procurar consolo bem ligeiro e bem curto nestas minúcias pueris e errantes. Além disso, por vulgares e insignificantes que pareçam, não podem deixar de ter na minha imaginação uma importância circunstancial, por motivo de sua íntima conexão com a época em que distingo agora os primeiros avisos ambíguos do destino, que (Depois me envolveu tão profundamente na sua sombra. Deixai-me, pois, recordar).

Como acabo de dizer, a casa era velha e irregular; a propriedade, grande, circundada por um muro de tijolos, alto e sólido, encimado por uma camada de argamassa e vidros quebrados. Aquela muralha, digna de uma prisão, formava os limites do nosso domínio. Não saíamos dali senão três vezes por semana; uma vez aos sábados de tarde, para uns passeios curtos e monótonos pelos campos vizinhos, em companhia dos prefeitos, e duas vezes aos domingos, quando íamos, com a regularidade de um regimento em parada, assistir aos ofícios da manhã e da tarde, na única igreja da aldeia.

0 cura dessa igreja era o reitor do colégio. Com que profundo sentimento de admiração e de dúvida o contemplávamos do nosso banco reservado, quando subia ao púlpito, com passo solene e vagaroso. Aquele personagem venerável, com aspecto tão modesto e tão benigno, vestes tão novas e tão clericalmente ondeantes, cabeleira tão perfeitamente empoada, tão direito e tão importante, podia ser o mesmo homem que, ainda agora, arrenegado e carrancudo, com as roupas todas sujas de tabaco, fazia executar, de palmatória na mão, as leis draconianas do colégio? Oh! gigantesco paradoxo, cuja monstruosidade não tem solução!

Mas, voltemos à descrição do edifício. Num ângulo da pa rede maciça, havia uma porta ainda mais maciça, solidamente carregada de fechaduras e terminada por um bosque de ferragens denticuladas. Essa porta (que sentimentos profundos ela inspirava) não se abria senão para as três saídas e entradas de que falei. Então, em cada crepitação dos seus gonzos possantes, achávamos uma superabundância de mistério, um mundo completo de observações solenes e de meditações ainda mais solenes.

0 recinto da propriedade era de forma irregular e dividido em muitas partes, das quais três ou quatro das maiores constituíam o pátio do recreio. Esse pátio, situado por detrás da casa, era alisado e coberto de areia, sem árvores nem bancos, nem coisa alguma semelhante: lembro-me perfeitamente. A frente do edifício, havia um pequeno jardim, plantado de buxo e outros arbustos; mas esse oásis sagrado só nos era franqueado em ocasiões solenes, tais como à entrada no colégio, à saída definitiva, ou ainda quando, convidados por algum parente ou amigo, partíamos alegremente para a casa paterna, nas férias do Natal ou de São João.

E a casa? Que curiosa construção apresentava! Para mim, que verdadeiro palácio mágico! Era um nunca acabar de recantos, de subdivisões incompreensíveis. Em qualquer parte que nos . achássemos, era difícil dizer ao certo se estávamos no primeiro ou no segundo andar. De sala para sala, havia sempre três ou quatro degraus a subir ou a descer. Depois, as subdivisões laterais eram incompreensíveis, inumeráveis, com tantas voltas e reviravoltas, que as nossas idéias mais exatas, relativamente ao conjunto da edificação, não eram mais aproximadas do que as que tínhamos do infinito. Durante cinco anos que ali residi, nunca me foi possível determinar exatamente a situação do dormitório que eu ocupava, em comunidade com pequeno mais dezoito ou vinte escolares.

A sala do estudo era a maior de todas da casa (e até de todo o mundo, pelo menos me parecia). Era muito comprida, muito estreita, com os tetos baixos e as janelas ogivais. Num canto afastado, de onde emanava o terror, havia um recinto quadrado de cito ou dez pés, que representava o Sanctum do nosso reitor, o Rev. Dr. Bransby, durante as horas de estudo.

Noutros dois cantos, viam-se outros compartimentos análogos, objetos de muito menos veneração: contudo, ainda era alvo de terror assaz considerável: um era a cadeira do mestre de belas letras; o outro a do mestre de inglês e de matemática. Espalhados pelo meio da casa, cruzavam-se, numa irregularidade completa, inumeráveis bancos e estantes carregadas de livros velhos e sujos; estas últimas, negras e antigas, estragadas pelo tempo, cobertas de cicatrizes, de letras e de nomes, de figuras grotescas e de outras numerosas obras-primas de canivete, conservavam apenas uns restos do pouco feitio original que noutros tempos haviam tido.

A uma extremidade da sala, estava um enorme balde cheio dágua e, na outra, o relógio de tamanho prodigioso.

Encerrado nos muros daquele colégio venerável, passei, todavia, sem aborrecimento nem mágoas, os anos do terceiro lustro de minha vida. 0 cérebro fecundo da infância não exige um mundo inferior acidentado para se entreter ou divertir; por isso, na monotonia aparente da escola, encontrei impressões mais vivas e mais intensas que todas as que a minha virilidade procurou depois, na devassidão e no crime.

0 meu primeiro desenvolvimento intelectual foi extraordinário, desregrado até. Em geral, os acontecimentos da vida infantil não deixam sobre a humanidade senão impressões mal definidas. Tudo são sombras, lembranças fracas e irregulares, confusão vaga de prazeres ligeiros e de penas fantasmagóricas. Comigo não acontece assim. É necessário que tenha sentido minha infância com a energia de homem feito; tudo o que encontro ainda hoje me está gravado na memória, com traços tão vivos, tão profundos e tão duradouros como as faces das medalhas cartaginesas.

E no entanto, debaixo do ponto de vista ordinário, esses dias mereciam pouca recordação. 0 levantar, o deitar, o estudo das lições, as recitações, os feriados periódicos e os passeios, o pátio do recreio, com suas lutas, os seus passatempos as suas intrigas, e nada mais; mas, tudo isso, por uma magia física que passou, continha uma superabundância de sensações, um mundo rico de incidentes, um universo de emoções variadas e de excitações inebriantes. Oh! bom tempo foi o desse século de ferro!

A minha natureza ardente, entusiasta e imperiosa, deu-me um lugar distinto entre os outros rapazes e pouco a pouco, como era natural, adquiri um poderoso ascendente sobre todos os que não eram mais velhos do que eu; sobre todos, exceto sobre um. Este um era o aluno que, sem ter comigo parentesco algum, tinha o mesmo nome de batismo e o mesmo nome de família (circunstância pouco notável

em si, porque o meu nome, não obstante a nobreza da origem, era um destes apelidos vulgares, que parece ter sido, desde tempo imemorial, por direito de prescrição, propriedade comum do povo). Nesta narrativa, o nome de Wilson (nome fictício, mas que não está muito afastado do verdadeiro) : só o meu homônimo, entre todos os que, segundo a linguagem do colégio, compunham a nossa classe, ousava rivalizar comigo nos estudos das aulas, nos jogos e nas disputas do recreio, recusar fé absoluta às minhas asserções e submissão completa à minha vontade; em suma, contrariava minha ditadura em todos os casos possíveis. Se jamais houve no mundo despotismo supremo e sem restrição, é o que uma criança de gênio exerce sobre as almas menos enérgicas dos seus camaradas.

A rebelião de William era para mim fonte perene de desgostos, tanto mais que, não obstante a bravata com que afetava tratá-lo, e as suas pretensões, no fundo, temia-o. Não podia deixar de encarar a igualdade que mantinha tão facilmente comigo, como uma prova de verdadeira superioridade, porque, pela minha parte, não era sem grandes e contínuos esforços que conseguia conservar-me à sua altura. Contudo, essa igualdade, ou, antes, essa superioridade, não era reconhecida senão por mim; os outros rapazes, com uma cegueira inexplicável, pareciam não dar por isso.

Wilson parecia igualmente destituído da ambição que me impelia a dominar, e da energia que me dava autoridade. Dir-se-ia que o único móvel da sua rivalidade era o desejo caprichoso de me contradizer, de me assustar, de me atormentar, posto que muitas vezes não pudesse deixar de notar, com sentimento confuso de espanto, de cólera e de humilhação, que o meu rival misturava às impertinentes contradições certos ares de afetuosidade, os mais intempestivos e os mais desagradáveis do mundo. Não podia explicar a mim próprio semelhante conduta, senão supondo-a o resultado de uma presunção insolente, permitindo-se o tom da superioridade e da proteção.

A nossa homonímia, junto ao Fato, puramente acidental, de termos entrado ao mesmo tempo no colégio, espalhara, entre os nossos condiscípulos das classes superiores, a idéia de que éramos irmãos. Ordinariamente, os rapazes grandes não indagam com muita exatidão da vida dos menores. Já disse que William não era, nem no grau mais remoto, aparentado com minha família. Mas, se fôssemos irmãos, teríamos sido gêmeos, porque, depois de ter deixado a casa do Doutor Bransby, soube, por acaso, que o meu homônimo nascera no dia 19 de janeiro de 1813, sendo precisamente esse dia (coincidência notável) o do meu natalício.

Parece incrível que, não obstante a rivalidade de Wilson e o seu insuportável espírito de contradição, não tivéssemos chegado a odiar-nos absolutamente. É verdade que tínhamos todos os dias uma questão, na qual, concedendo-me publicamente a palma da vitória, Wilson não deixava de me fazer sentir, por qualquer forma, que era ele que a tinha merecido. Contudo, um sentimento de orgulho da minha parte, e da sua, uma verdadeira dignidade, mantinha-nos sempre nos termos da estrita conveniência. Ao mesmo tempo, a quase igualdade dos nossos caracteres havia despertado em mim um sentimento que, sem aquela situação hostil, teria progredido em amizade. Realmente, é-me difícil definir os verdadeiros sentimentos que nutria. por ele. Era uma mistura variegada e heterogênea: animosidade petulante, que não chegava a ser ódio; estima, respeito, muito receio e uma curiosidade imensa e inquieta. Para o moralista, é escusado acrescentar que William e eu éramos camaradas inseparáveis.

Em conseqüência dessa ambigüidade de relações, todos os meus ataques contra ele (e, francos ou dissimulados, esses ataques eram numerosos) tinham mais a forma da ironia e da brincadeira, que a da hostilidade séria e determinada. Mas, os meus esforços neste sentido não obtinham grande triunfo, por mais engenhosamente que os planasse - porque o meu homônimo tinha no caráter muita dessa austeridade plácida e reservada que dá aos que a possuem o privilégio de ferir os outros, sem mostrarem nunca o calcanhar de Aquiles. Nunca pude achar nele senão um ponto vulnerável; e isso mesmo era um pormenor físico que, procedendo talvez de uma enfermidade de construção, teria sido respeitado por qualquer antagonista menos encarniçado do que eu. 0 meu homônimo tinha fraqueza do aparelho vocal, que o impedia de levantar a voz acima de um murmúrio muito baixo. Era dessa imperfeição que eu tirava as minhas pequenas desforras.

Wilson tinha diferentes espécies de represálias, mas havia particularmente uma que me fazia ir aos ares. Não sei como chegou a perceber que semelhante futilidade produzia em mim tão grande efeito. Mas, desde que o descobriu, foi o seu gênero de tortura predileto.

0 meu nome de família, tão desengraçado e deselegante, e o meu nome próprio, tão trivial senão tão completamente plebeu, eram para mim, e toda a vida tinham sido, assuntos de grande desgosto. Ora, quando se apresentou no colégio, no mesmo dia da minha chegada, um segundo William Wilson, senti-me logo disposto contra ele, unicamente por se chamar assim, porque seria causa de eu ouvir pronunciar o dobro das vezes essas sílabas que me torturavam os ouvidos, porque a sua vida, em funções, do colégio, seria, muitas vezes e imitavelmente, confundida com a minha. E, por todas essas razões, desgostei-me ainda mais do nome.

Este sentimento de irritação aumentava em cada circunstância, que tendia a pôr em evidência qualquer semelhança física ou moral entre mim e o meu homônimo. Nesse tempo, ainda eu não tinha descoberto o fato muito notável da paridade das nossas idades; mas via que éramos da mesma altura e achava até certa semelhança nas nossasfisionomias, o que me contrariava solenemente. A fama que corria, e que era geralmente acreditada, nas classes superiores, de que éramos parentes, exasperava-me do mesmo modo. Numa palavra, não havia nada que me encolerizasse mais (bem que eu me contrafizesse o mais possível para não dar a conhecer) do que uma alusão qualquer à nossa semelhança, quer física, quer moral, ou ao suposto parentesco. Todavia, nada me levava a crer que essas analogias tivessem dado lugar a comentários ou houvessem sequer sido percebidas pelos nossos camaradas de classe. Que Wilson as observasse com tanta atenção como eu, era natural; mas o que não era natural era ter descoberto em semelhantes circunstâncias mina tão rica de contrariedades para mim.

Tendo, pois, percebido quanto essas semelhanças me desagradavam, o meu homônimo aumentava-as ainda, arremedando-me com habilidade verdadeiramente prodigiosa.

Copiava-me o gesto, as minhas palavras; adotava o meu vestuário, o meu andar, as minhas maneiras, enfim, nem mesmo a minha voz lhe havia escapado, não obstante o seu defeito constitucional. Não me podia imitar as notas altas, mas o timbre e a entonação eram idênticos. Quando falava baixo, a sua voz era perfeitamente o eco da minha.

Não tentarei dizer-vos até que ponto aquele retrato curioso me apoquentava (porque não posso chamar-lhe. propriamente uma caricatura). A minha única consolação era que só eu notava essa perfeitíssima cópia; assim, não tinha a suportar senão os sorrisos misteriosos e singularmente sarcásticos de Wilson que, satisfeito de produzir no meu coração o efeito desejado, parecia deleitar-se, em segredo, na punhalada que me infligia, sem curar dos aplausos públicos, que o seu engenho lhe teria facilmente conquistado. Como é que os nossos camaradas não compreendiam, não se percebiam as manobras, não tomavam parte naquela maliciosa zombaria? Durante meses de inquietação, foi isto um enigma insolúvel para mim. Talvez que a lentidão graduada da imitação a tornasse menos notável; ou talvez devesse eu, antes, a minha salvação à perfeita mestria do copista que, desprezando a letra (coisa única que os espíritos broncos podem apreciar na pintura), não se ocupava senão do espírito original. para maior admiração e desgosto da minha pessoa.

Já falei muitas vezes dos cruciantes ares de proteção que ele tomava para comigo e da sua intervenção oficiosa em quase todas as minhas vontades. Essa intervenção vinha, muitas vezes, sob a forma de conselho, conselho que não era dado francamente, mas sugerido, insinuado, 1 e que eu recebia com má vontade, a qual aumentava, à medida que me ia tornando mais velho. Contudo, nesta época longínqua, quero fazer-lhe a estrita justiça de confessar que todas as sugestões do meu rival eram ajuizadas e superiores à sua idade, ordinariamente destituída de reflexão e de experiência; que o seu bom-senso, os seus talentos e o seu conhecimento do mundo estavam muito acima dos meus; e que eu seria, hoje, melhor, e, por conseguinte, mais feliz, se não tivesse rejeitado tantas vezes os conselhos encerrados nessas assisadas sugestões, que então me inspiravam tamanho ódio e desprezo.

Por fim, revoltei-me inteiramente contra a sua odiosa vigilância. detestando cada vez mais o que eu considerava insolência intolerável. Disse que, nos primeiros anos da nossa camaradagem, os meus sentimentos para com ele poderiam, noutras circunstâncias, ter-se convertido em amizade; mas, durante os últimos meses que passei no colégio, não obstante a importunidade das suas maneiras habituais ter diminuído consideravelmente, esses sentimentos, numa proporção quase semelhante, tinham propendido para o ódio positivo. Uma vez, presumo que patenteei isto muito claramente, e, desde então, Wilson evitou-me ou simulou evitar-me.

Foi pouco mais ou menos nessa época (se a memória não me engana), numa altercação que tivemos, durante a qual ele perdeu a reserva ordinária, falando e portando-se com negligência quase estranha à sua natureza, que descobri ou imaginei descobrir na sua voz, nos seus modos e na sua fisionomia, geral, alguma coisa que me era muito familiar. Essa descoberta, primeiro, fiz-me estremecer, depois, interessou-me vivamente, trazendo ao espírito visões obscuras da minha primeira infância, recordações confusas, estranhas, resumidas, de um tempo que a memória não podia alcançar. Era como uma idéia extravagante e pertinaz de já ter visto o ser que me falava, em época muito antiga, em período extremamente remoto, Essa ilusão, todavia, desvaneceu-se tão rapidamente como tinha vindo; não a menciono senão para determinar o dia da última altercação, que tive com o meu singular homônimo.

- 0 velho casarão do colégio, nas suas inumeráveis subdivisões, compreendia muitos quartos grandes, que comunicavam entre si e serviam de dormitório à maior parte dos alunos. Além disso, havia (como não podia deixar de ser numa edificação tão desastrada) uma quantidade de cantos e recantos, (sobras e remates da construção) que o talento econômico do Doutor Bransby tinha igualmente transformado em dormitórios; mas, como eram gabinetes pequenos, não podiam comportar mais de um indivíduo. Um destes quartos era ocupado por Wilson.

Uma noite, no fim do meu quinto ano de colégio, depois da alteração de que falei, levantei-me, enquanto todos dormiam, peguei num candeeiro e dirigi-me furtivamente, através de um labirinto de corredores estreitos, ao quarto do meu rival. Havia muito que projetava pregar-lhe uma partida, uma das tais troças que eu lhe fazia muitas vezes mas das quais, é preciso confessá-lo, nunca colhera grande resultado. Nessa noite, tinha resolvido pôr o meu plano em execução, disposto a fazer-lhe sentir toda a força da acrimônia que me animava contra ele. Quando chequei ao seu quarto, entrei, sem fazer bulha, deixando o candeeiro à porta, coberto com um guarda-luz, e avancei até sentir o ruído da sua respiração tranqüila. Tendo adquirido a certeza de que dormia profundamente, voltei à porta, pequei no candeeiro e aproximei-me novamente do leito.

As cortinas estavam fechadas. Ao abri-las, com todo o cuidado, para executar o meu projeto, a luz bateu em chapa no rosto do dormente; ao mesmo tempo o meu olhar caiu sobre a sua fisionomia... Penetrou-me instantânea mente uma sensação de gelo; o coração pulou-me no peito, vacilaram-me os joelhos; apoderou-se de toda a minha alma um horror espantoso, inexplicável! Respirei convulsivamente, aproximando ainda mais o candeeiro. Aquelas feições eram realmente as de Wilson? Sim, eram! eram! Que havia pois de extraordinário no seu semblante para produzir em mim tal impressão? Contemplei-o durante alguns momentos, trêmulo, convulso; o meu cérebro girava sob a ação de mil pensamentos incoerentes. Ele não era assim, não! Nunca chegara a ser assim nas horas ativas em que contrafazia a minha pessoa! Estaria verdadeiramente nos juizes da possibilidade humana, que o que eu via agora fosse unicamente , resultado dessa hábil imitação sarcástica? Gelado de espanto, apaguei o candeeiro, saí silenciosamente do quarto, e deixei para sempre o recinto daquela escola velha e extraordinária.

Depois de um lapso de alguns meses, que passei em casa de meus pais, na completa ociosidade, entrei para o Colégio de Eton. Esse pequeno intervalo bastara para dissipar as lembranças do Colégio Bransby, ou pelo menos para mudar consideravelmente a qualidade dos sentimentos que essas lembranças me inspiravam. 0 acontecimento, que me induzira a deixar o colégio, parecia-me agora efeito de pura imaginação. A realidade, o lado trágico do drama tinha desaparecido completamente. Quando me lembrava de semelhante aventura, admirava até onde pode chegar a credulidade humana, e ria-me da prodigiosa força de imaginação que havia herdado de minha família.

Ora, a minha vida em Eton não era nada própria para diminuir aquela espécie de ceticismo. 0 turbilhão de loucura em que mergulhei imediatamente varreu tudo, absorvendo de uma vez e inteiramente as impressões sólidas e sérias do passado.

Não pretendo, todavia, traçar aqui o curso dos meus miseráveis desregramentos, que nenhuma lei ou vigilância podia deter. Três anos eram passados; três anos perdidos em loucuras, durante os quais a minha alma se habituou ao vicio e o meu corpo adquiriu desenvolvimento quase anormal. Um dia, depois de uma semana inteira de dissipação brutal, convidei alguns estudantes dos mais dissolutos para uma orgia secreta no meu quarto. Reunimo-nos a altas horas da noite, devendo o deboche prolongar-se religiosamente até a manhã do dia seguinte. 0 vinho corria livremente, e outras seduções, talvez ainda mais perigosas, não tinham sido esquecidas. Quando a aurora despontava no oriente, o delírio e a extravagância tinham chegado ao apogeu.

Furiosamente inflamado pela embriaguez e pelas cartas, obstinava-me a propor um toast de todo indecente, quando a minha atenção foi subitamente distraída pela entrada precipitada de um criado, anunciando-me que alguém, que parecia estar com muita pressa, pedia para me falar no vestíbulo.

Excitado como estava pelo vinho, aquela interrupção inesperada causou-me mais prazer do que surpresa. Saí do quarto cambaleando, e em poucos segundos achei-me no vestíbulo da casa, uma sala baixa, estreita, alumiada apenas pela fraca luz da aurora, que penetrava através das janelas arqueadas. A pessoa que me esperava era um rapaz pouco mais ou menos da minha altura, vestido com uma roupa de casimira branca, exatamente irmã da que eu trazia nesse momento. Apenas me viu, avançou para mim, agarrou-me pelo braço com um gesto imperativo de impaciência, e murmurou-me ao ouvido: William Wilson. Aquelas palavras a minha embriaguez dissipou-se como por encanto. Havia nos modos do estrangeiro, no tremor nervoso do seu dedo erguido diante dos meus olhos, o que quer que seja sobrenatural. A importância, a solenidade da repreensão contida nas suas palavras baixas e sibilantes, o caráter, o tom, a chave dessas sílabas, simples, familiares, contudo misteriosamente segredadas, fizeram-me estremecer como se na minha alma se houvesse produzido a descarga de uma pilha voltaica.

Durante alguns segundos, o espanto e o terror aniquilaram-me o entendimento; quando voltei a mim, o rapaz tinha desaparecido.

Aquele acontecimento produziu um efeito poderosíssimo sobre minha imaginação desregrada. Contudo, esse efeito foi-se desvanecendo pouco a pouco. Pensei nisso, é verdade, durante muitas semanas, ora entregando-me a sérias investigações, ora permanecendo dias e dias engolfado em mórbidos pensamentos. A identidade do indivíduo, que se intrometia tão obstinadamente nos atos da minha vida, não me deixava dúvidas. Mas, quem era? Quem era William Wilson, de onde vinha e quais os seus fins? Esses pontos ficaram sempre obscuros para mim. De todas as indagações que fiz a seu respeito, só pude saber que um acontecimento súbito o obrigara a deixar o colégio na mesma tarde do dia em que eu fugira. Entretanto, passado certo tempo, deixei de pensar nisso, para me entregar inteiramente aos projetos da minha partida para Oxford.

Apenas chequei àquela cidade (permitindo-me a generosidade pródiga de meus pais o luxo e a opulência tão caros ao meu coração) comecei a rivalizar em prodigalidades com os primeiros herdeiros dos condados mais ricos da Grã-Bretanha.

Incitado ao vicio por semelhantes meios, dei largas à natural propensão, calcando, na embriaguez louca dos meus desregramentos, os obstáculos vulgares da honra e da decência. Mas, seria absurdo demorar-me nos debates de tais extravagâncias. Basta dizer que as minhas dissipações ultrapassaram as de Herodes. Inventando uma multidão de loucuras novas, ajuntei copioso apêndice ao longo catálogo dos vícios que reinavam então na universidade mais devassa da Europa.

Enfim, arrastado pela corrente impetuosa da libertinagem e da cobiça, rebaixei-me ao ponto de adquirir as manhas mais vis dos jogadores de profissão, praticando habitualmente essa ciência desprezível como meio de aumentar a minha

fortuna, já avultada, à custa da dos meus camaradas. A enormidade do 4tentado, incompatível com todos os sentimentos de honra e de dignidade, era por isso mesmo a minha salvaguarda. Qual dos meus camaradas, mesmo dentre os mais depravados, teria ousado conceber tal suspeita, do alegre, do franco, do generoso Willíam Wilson, do rapaz mais nobre e mais liberal de Oxford, aquele cujas loucuras, diziam os seus parasitas, não eram senão expansões da mocidade desenfreada, cujos erros não eram senão inimitáveis caprichos, e cujos vícios tenebrosos não passavam de ligeiras extravagâncias!

Deste modo alegre, tinha eu passado dois anos, quando chegou à universidade um rapaz de nobreza recente, chamado Glendinning, rico, diziam, como Herodes Attico, e que não punha muita dúvida em gastar a sua fortuna. Tratei de travar conhecimento com ele, e, vendo que era fraco de inteligência, assinalei-o desde logo para vítima dos meus talentos. Convidei-o a jogar muitas vezes, deixando-o ganhar a princípio, somas consideráveis (conforme a manha habitual dos jogadores). Por fim, o meu plano estando bem pensado, encontramo-nos (eu com a intenção bem firme de fazer das minhas) em casa de um dos nossos camaradas, M. Preston, igualmente conhecido de ambos, mas que, devo dizê-lo, não tinha a menor tenção de fazer jogo em sua casa. Para dar a tudo aquilo melhor aparência, trouxe comigo uma sociedade de oito a dez rapazes, preparando as coisas de modo quê a introdução das cartas parecesse perfeitamente acidental e que a idéia do jogo partisse da própria vítima. Em resumo (para abreviar assunto tão vil), não esqueci nenhuma das espertezas empregadas em casos idênticos, espertezas tão estúpidas e tão sabidas que, custa a crer, haja sempre pessoas assaz simples que se deixem enganar por elas. 0 jogo meu favorito foi o écarté.

A noite ia já em mais de meio, quando operei enfim de maneira a ficar com Giendinning por único adversário. As outras pessoas, interessadas pelas proporções grandiosas que ia tomando o nosso combate, tinham largado as cartas e faziam galeria à roda de nós. Glendinning baralhava, dava as cartas e jogava de modo singularmente nervoso; mas, como eu o fizera beber copiosamente durante a primeira parte da noite, imaginei que aquele estado era só efeito da embriaguez. Em pouco tempo, devia-me soma considerável. Então, depois de ter bebido mais um copo de Porto, fez exatamente o que eu tinha previsto: quis dobrar a parada, já muito extravagante. Com uma feliz afetação de resistência e só depois da minha recusa reiterada lhe ter provocado palavras azedas e duras, que deram ao meu consentimento a forma de vingança, cedi. 0 resultado foi o que devia ser. A presa caíra perfeitamente no laço; em menos de uma hora, a sua dívida tinha quadruplicado. Então, notei, com espanto, a palidez terrível ,que substituíra, quase repentinamente, na fisionomia do meu adversário, a vermelhidão do vinho. Digo com espanto,, porque, segundo as informações cuidadosas que tomara sobre Glendinning, imaginava-o prodigiosamente rico, e as somas que ele tinha perdido até ali, se bem que realmente fortes, não podiam (pelo menos assim o supunha eu) embaraçá-lo àquele ponto. Imaginei, ainda, que toda a sua perturbação era produzida pelo vinho e não por qualquer motivo de desinteresse; mas, unicamente para salvaguardar perante os outros rapazes a reputação do meu caráter, ia insistir peremptoriamente para acabar o jogo, quando algumas palavras pronunciadas ao meu lado e uma exclamação de Glendinning, exprimindo o mais completo desespero, me fizeram compreender que o tinha totalmente arruinado. Ser-me-ia difícil dizer a conduta que teria adotado em semelhante circunstância. A situação deplorável da minha vitima sensibilizava e entristecia a todos. Durante alguns minutos de profundo silêncio, senti, a meu pesar, ruborizarem-se-me as faces sob os olhos ardentes de repreensão que me dirigiam os menos endurecidos da sociedade. Confessarei, mesmo, que senti o coração aliviado dum peso intolerável à interrupção extraordinária que se seguiu. De repente, abriram-se de par em par as portas pesadas do aposento com uma impetuosidade tão vigorosa, que toda, as velas se apagaram como por encanto. Mas, antes de se extinguir, a luz deixou-nos ver alguém que entrava, homem proximamente da minha estatura, embuçado num capote. Não obstante, as trevas sendo agora completas, só o podíamos sentir no meio de nós. Antes de alguém ter voltado a si do espanto excessivo que produzira em todos aquela violência, ouvimos a voz do intruso:

- Meus senhores, - disse ele com voz muito baixa, mas distinta, uma voz inolvidável, que me gelou até à medula dos ossos, - meus senhores, não peço desculpa da minha conduta, porque, procedendo assim, não fiz mais que cumprir um dever. Não conheceis decerto o caráter da pessoa que acaba de ganhar no écarté uma soma enorme a Lorde Glendinning. Vou, pois, propor-vos um meio rápido de chegardes a esse importantíssimo conhecimento. Peço-vos, examinai bem o forro do canhão da sua manga esquerda e algumas cartas que achareis nas algibeiras assaz vastas do seu casaco.

0 silêncio em que o escutavam era tão profundo, que teria ouvido o ruído de um alfinete caindo ao chão. 0 desconhecido, mal acabou de falar, partiu tão bruscamente como havia entrado. Quanto a mim, não posso descrever, nem mesmo sei quais foram as minhas impressões! Senti-me agarrado por muitos braços, depois vieram luzes; seguiu-se uma pesquisa na minha pessoa. No forro da manga, acharam-me todas as figuras essenciais do écarté e, nas algibeiras do casaco, certo número de baralhos de cartas exatamente iguais aos que usávamos nas nossas reuniões, com a diferença de que as minhas eram daquelas chamadas propriamente boleadas. As cartas principais, sendo ligeiramente convexas do lado Pequeno, e as ordinárias imperceptivelmente convexas do lado grande. Graças a esta disposição, o ingênuo, que corta o baralho (como se faz habitualmente) no sentido do cumprimento, corta, invariavelmente, de forma a dar ao parceiro uma carta principal, enquanto que o esperto, cortando no sentido da largura, não dará à sua vítima nada que possa levar-lhe vantagem.

Uma tempestade de indignação ter-me-ia feito sofrer menos que o silêncio desdenhoso e os sorrisos sarcásticos que acolheram aquela descoberta.

- Sr. Wilson, - disse o dono da casa, apanhando do chão uma capa magnífica forrada de peles preciosas, - Sr. Wilson, isto é seu (como o tempo estava frio, eu tinha efetivamente trazido uma capa, que tirara ao entrar na sala do jogo); creio - acrescentou, mirando as pregas da capa, com um sorriso amargo - creio que será escusado procurar aqui mais provas da sua arte: bastam-nos as que temos. Espero que compreenderá a necessidade de deixar Oxford; em todo o caso, sairá imediatamente de minha casa.

Aviltado, humilhado até a lama, é provável que tivesse castigado imediatamente aquela linguagem insultante: com alguma violência pessoal, se a minha atenção não estivesse, naquele momento, toda absorvida por um fato verdadeiramente pasmoso. A minha capa era um traste riquíssimo, forrada de peles esplêndidas, duma variedade e dum preço extravagante (é inútil dizê-lo). 0 feitio era de fantasia, inventado por mim, porque me ocupava muito de todas essas futilidades luxuosas, levando o furor do dandismo até ao absurdo. Por isso, quando M. Preston me entregou a capa, que apanhara do chão, vi, com espanto vizinho do terror, que já trazia a minha no braço e que aquela, até nos pormenores minuciosos, era perfeitamente semelhante. Não perdi, contudo, a presença de espírito; pequei-a, coloquei-a sobre a minha, sem que os outros dessem por isso, e sai da sala com um olhar ameaçador. Na madrugada seguinte, deixei precipitadamente Oxford e fugi para o continente, coberto de vergonha e de terror.

Fugia em vão! 0 meu destino maldito perseguiu-me triunfante, provando-me que o seu poder misterioso tinha apenas começado. Mal pus os pés em Paris, tive logo uma prova da jurisdição de Wilson. Decorreram anos sem tréguas para mim. Miserável! Em Roma, com que desvê-lo importuno, com que ternura de espectro, veio interpor-se entre mim e a minha ambição! E em Viena! E em Berlim! E em Moscou! Aonde podia eu ir, que não achasse logo uma razão amarga para o amaldiçoar do fundo do coração? Atacado por um pânico indescritível, fugia diante da sua tirania como diante da peste. Fugi até ao fim do mundo, mas fugi em vão!

E sempre, sempre interrogando secretamente: a alma, repetia as minhas perguntas: Quem é? De onde vem? Que quer? E analisava, então, com minucioso cuidado, as formas, o método, as feições características da sua insolente vigilância. Mas, nem nesse ponto achava nada que pudesse servir de base a uma conjetura. Era uma coisa verdadeiramente notável, que nos casos numerosos em que Wilson tinha recentemente, atravessado o meu caminho, todos os planos derrotados por ele eram loucuras que, se tivessem progredido, teriam fatalmente rematado por uma desgraça. Triste justificação, na verdade, de uma autoridade tão imperiosamente usurpada! Triste indenização dos direitos naturais do livre arbítrio, tão teimosa e insolentemente denegados!

Havia muito tempo que o meu carrasco, posto que exerceu sempre escrupulosamente e com destreza milagrosa a sua mania de toilette idêntica à minha, se apresentava em todas as suas intervenções, de maneira a não me mostrar o rosto. Quem quer que fosse esse danado Wilson, por certo semelhante mistério era o cúmulo da afetação e da toleima. Podia, acaso, supor que no meu conselheiro de Eton, no destruidor da minha honra em Oxford, naquele que tinha contrariado a minha ambição em Roma, a minha vingança em Paris, os meus amores em Nápoles e no Egito a minha cobiça, que nesse ente, meu grande inimigo e meu gênio mau. eu não reconhecia o William Wilson do colégio, o homônimo, o camarada, o rival temido e execrado da casa Bransby? Era impossível! Mas, deixai-me chegar à terrível cena que fechou o drama.

Até então, havia-me submetido covardemente ao seu domínio imperioso. 0 profundo sentimento de respeito com que me habituara a considerar o caráter elevado, a majestosa sabedoria, a onipresença e onipotência aparentes de Wilson, misturando com não sei quê de sensação e de terror, que inspiravam as outras feições da sua natureza e certos privilégios, tinham-me incutido a idéia da minha completa fraqueza e impotência, aconselhando-me, humildemente, sem restrição, posto que cheia de tristeza e de repugnância, submissão à sua arbitrária ditadura. Mas, ultimamente, tinha-me abandonado de todo ao vinho, e a sua influência irritante sobre o meu temperamento hereditário tornava-me cada vez mais rebelde a toda qualidade de censura. Entrei a murmurar, a hesitar, a resistir. Depois, pouco a pouco, comecei a sentir a inspiração de uma esperança ardente. Por fim, alimentei, em segredo, no pensamento, a resolução desesperada daquela escravidão.

Era em Roma, durante o carnaval de 18 ... ; achava-me num baile de máscaras, no palácio do Duque Di Broglio, de Nápoles. Nessa noite, tinha abusado do vinha ainda mais do que o costume, e a atmosfera sufocante das salas cheias de gente irritava-me de modo insuportável. A dificuldade de abrir caminho através da multidão não contribuiu pouco para me exasperar, porque procurava com ansiedade (não direi com que indigno fim) a jovem, a alegre e bela li uma confiança assaz imprudente, me havia confiado o segredo do costume que ela devia trazer ao baile. Tendo-a avistado, finalmente, ao longe, apressava-me a chegar até ela, quando senti alguém que, ao de leve, me tocava o ombro, e depois o tom meu ouvido!

Do lho e extravagante Di Broglio o que, com inolvidável, profundo, maldito murmúrio. Voltei-me furioso para aquele que assim me interrompia e agarrei-o violentamente pela gola. Trazia, já se vê, costume igual ao meu; manto espanhol de veludo azul e espada suspensa à cintura por um boldrié carmesim; a cara inteiramente coberta com uma máscara de seda preta.

- Miserável! - exclamei, com a voz enrouquecida pela cólera, que me aumentava a cada sílaba que proferia, - miserável! impostor! Celerado não voltarás mais a perseguir-me, a atormentar-me! Vem comigo ou mato-te aqui mesmo!

Dizendo aquelas palavras, abria caminho da sala do baile para uma pequena antecâmara contígua, arrastando-o irresistivelmente atrás de mim.

Apenas entrei, atirei com ele para longe, de encontro a uma parede; depois, fechei a porta, com uma praga tremenda, e mandei-o desembainhar a espada. Hesitou um segundo; por fim, suspirando ligeiramente, pôs-se em guarda, com silêncio e tranqüilidade extraordinárias.

0 combate não foi longo. Exasperado como estava, por ardentes excitações de toda espécie, sentia no braço a energia e o poder de um exército. Dentro em poucos segundos, levei-o contra a parede e ali, tendo-o à discrição, cravei-lhe repetidas vezes a espada no peito, com a ferocidade de um bruto.

Nesse momento, mexeram na fechadura da porta. Apressei-me a prevenir alguma invasão e voltei imediata- mente para junto do meu adversário agonizante. Mas que linguagem humana pode traduzir o espanto e o horror que se apoderaram de mim, ao espetáculo que, se me deparou! Durante o curto instante que me afastara, produzira-se nas disposições locais do aposento uma mudança material.

No lugar onde me recordava de não ter visto - nada, estava agora um espelho enorme (no estado de perturbação em que me achava, assim se me afigurou) e, como eu caminhasse para ele, cheio de terror, a minha própria imagem, mas com a cara horrivelmente pálida e toda salpicada de sangue, avançou para mim a passos lentos e vacilantes.

Tal se me afigurava, digo, mas realmente não era assim. Era o meu adversário, era Wilson moribundo, que se erguia diante de mim. A sua máscara e o seu manto estavam no chão. Não havia um fio no seu vestuário, nem uma linha em toda a sua figura (tão caracterizada e tão singular) que não fosse meu, que não fosse minha; era o absoluto na identidade!

Era Wilson, mas Wilson sem murmurar já as suas palavras! Falando alto, e de modo que me pareceu que era a minha própria voz, que dizia:

- Venceste e eu sucumbo. Mas, doravante também estás morto, morto para o mundo, para o céu e para a esperança! Em mim existias; e, agora, olha para a minha morte, vê nesta imagem, que é a tua, como te assassinaste a ti próprio!

FIM